Os almanaques eram publicações anuais que traziam de tudo, das fases da lua até remédio para unha encravada. Isto aqui é uma versão em pílulas semanais. Nesta edição: uma retrospectiva do primeiro ano deste boletim.
No dia 18 de novembro de 2023, este boletim estreava trazendo umas verdades: a ficção é perigosa. Mata mais que a vida real, fez o então candidato a presidente Javier Milei surtar, e transforma balões-espiões em discos-voadores.
Nas semanas seguintes, o Almanaque voltou mostrando como identificar pinguins e o portal do inferno, resgatar línguas e mezzo sopranos, e memorizar os nomes do Rio Amazonas. Trouxe os hipopótamos de Escobar, os veados-campeiros, as carreiras artísticas de Kissinger e Trump. Relembrou o sexismo no setor de inteligência, o Atlético de Sorocaba na Coreia do Norte, Mussum na Angola, as cartas celestes, a poesia na Somália, os selinhos de Vida Alves, as armações de Thomas Edison, a importância da água com açúcar para as plantas, o primeiro-ministro vítima da própria pergunta, os cupins anticapitalistas, e Carlos Lacerda segundo Carolina Maria de Jesus. Testou transmissões espaciais ou pela internet com Gilberto Gil ou gatos, a paciência de Sofia Coppola, a existência da Síndrome de Estocolmo, as projeções do mercado, a insônia do inspetor Maigret, e a feijoada poética. Mergulhou nos apocalipses, na história dos políticos com péssimo timing, na hipotermia, na origem da arquitetura ocidental, na obra do taiwanês “louco”, e nas competições em que o homem bateu a máquina.
No início de 2024, o Almanaque procurou sanduíches pelo mundo, Carlos Gardel pelo cinema, e as causas da flatulência em aeronaves.
Entrou num violino do século XVIII, nos inícios da dinastia Caiado, nos perigos do glitter, no pioneirismo de dois continentes de Joaquim Guerreiro, e nos números dos Munduruku. Foi a fundo nas salvas de canhão musicais, na longevidade canina, e na palavra bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk. Projetou os filmes do coração de líderes mundiais, os dramas turcos, o consumo dos centros de dados, e a nação de Wa. Refogou a sogra do Marquês de Sade, os beijos romanos, o coentro e a salsa, o mapa de Fra Mauro, e a máscara do Ilê Aiyê. Falou em kuduro, Merdeka, Dooku, Pikapika, Xana, e erva-do-bode-excitado. Explorou o Edifício Kavanagh, a demonização de livros no Brasil, o colégio eleitoral no mundo, e os efeitos de abracadabra. Soltou a indomável Edith Bone, lobisomens lusitanos, manchas de molho de tomate, e clones nas eleições russas. Na edição 19, declarou guerra ao barulho no Camboja, ouviu os bastidores de Roque Santeiro, fez as pazes com a cobra cascavel, e conheceu a obra literária do deputado Luciano Bivar. Logo após, descobriu de onde saiu a Mafalda, onde foi parar o cérebro de Einstein, e viu Guerra nas Estrelas num oferecimento da Cerveja Cristal.
A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária.
Ailton Krenak, membro caçula da Academia Brasileira de Letras, em A Vida Não É Útil.
Sessenta eventos para os sessenta anos da tomada do poder pelos militares em 1964 — a tal Redentora no linguajar da caserna —, uma edição tão épica que foi divida em duas partes.
Na primeira parte, a opinião pública, Olympio “Dois Golpes” Mourão Filho, o fracasso de Lacerda, os campeões da reforma agrária, os espiões comunistas legítimos e os falsos, as conspirações de Aladino Félix, e a malandragem de Érico Veríssimo.
Edição especial da Redentora II
Na segunda parte, a primeira-dama em transe, os Cem Mil da Cinelândia, as três décadas do Major Curió, a guerra das tesouras na censura, a máquina inchada, a Amazônia retalhada, a epidemia que ninguém viu, o milagre que foi sem nunca ter sido, o heroico Passarinho e o vilão Capitão Guimarães.
Em seguida, você foi encurralado pelo pior musical de todos os tempos, pelo granito verde de Ubatuba, pela lenda de Greenwich, e pelo trabalho em excesso. Aprendeu sobre as maravilhas do mijo na poesia, na História, no espaço, nos palcos, na química, e no mundo animal. Verificou as utilidades das cascas, a economia deficitária da mudança climática, as acompanhantes do Esporte Clube Vitória, e os protestos do complexo financeiro-educativo de Columbia. Encharcou-se com o antecessor do cavalo Caramelo, os parlamentares desinteressados, as cidades despreparadas, o onipresente Mangabeira Unger, e a solução das árvores. Embrenhou-se pelos buracos negros, pelos esgotos de Londres, pelas polêmicas de obras póstumas, nas falhas da cibersegurança, e de bicicleta por aí. Abafou com o aniversário de Pixinguinha, o elixir do imperador, o camundongo da inteligência artificial, os segredos da indústria, e o abacaxi de luxo. Flutuou com as fontes perdidas no Tâmisa, os divórcios maranhenses, o tango negro, o Conselheiro do Adoniran, e os imóveis AAA. Apaixonou-se por Clementina, Georgina, o chupacabra, as palavras bantu, e a pequena samambaia do grande genoma. Estranhou a Câmara dos Deputados, o Conselho Federal de Medicina, interpretações bíblicas suspeitas, e as vítimas duplamente penalizadas. E colocou todas as fichas na Estrela do Norte, no comprador do Degas que podia não ser, na epidemia de bets, na aposta entre um filósofo e um neurocientista, e em assassinatos em massa fictícios.
Separados no desespero: o trapalhão Didi Mocó (Renato Aragão) e o escritor Charles Bukowski.


No fim de junho, o Almanaque deu um jeito de se adaptar aos políticos septuagenários em campanha, à Grande Mancha de Júpiter, ao “orgulho” do Irã, às altas temperaturas e ao Boi-Bumbá. O que veio depois foi caos: a banda mais perigosa do punk, o barraco no concerto de Viena, a prisão do Belo, o pesadelo de Chioma Okoli, e a política de insustentabilidade brasileira. Leões nadaram longas distâncias, presidentes e imperadores sobreviveram — ou não — a atentados, Prince Nico Mbarga bateu os Beatles, e italianos e brasileiros mudaram de name. Apareceram o homem mais rico de todos os tempos, o evangélico-padrão de São Paulo, a leveza do hipopótamo, e a maior nota de rodapé da História.
O Almanaque também se conectou aos urubus da Índia, às desculpas do Datena, ao narcoagrotráfico da América Central, ao desprezo pelos deputados, e às ambiguidades olímpicas. Iludiu-se com as colheres de Uri Geller, o falsário do Spielberg, a volta nos braços do povo, e a controvérsia fabricada do boxe olímpico. Já a edição 37 foi um luxo só com o Fusca de Pepe Mujica, o óleo de lavanda, a festa-surpresa perfeita, e um suplemento ilustrado sobre a Última Ceia, da época de Leonardo até as guerras culturais na internet.
O Almanaque, porém, não teve tempo para ressacas. Mostrou os bicos de Gena Rowlands, os oráculos de ossos chineses, o avesso do Amigo da Onça, as amigas dos sapos, e a falta que um rosto faz. Quando tirou uma folga, deixou os leitores na ausência de Agatha Christie. Voltou explicando a lua, escavando uma canção do Silvio Santos até chegar na União Soviética, destrinchando o governo Reagan, e bebendo de mindinho em pé com Getúlio Vargas. Perdeu-se nos labirintos da inteligência humana e artificial, no marketing do ChatGPT, e nas máquinas pensantes da ficção e da quase-ficção.
Não prestem atenção no homem atrás da cortina.
O Mágico (Frank Morgan), ao ser desmascarado pelo cachorro Totó, em O Mágico de Oz (Victor Fleming, 1939). Roteiro de Noel Langley, Florence Ryerson, e Edgar Allan Woolf a partir do romance de L. Frank Baum.
Em meados de setembro, você pôde escapar da vida virtual, fazer receitas babilônicas na sua cozinha, escrever cartas a Julieta, viajar pelos sonhos na Radio Nacional, e se despedir de um pinguim.
Meteu-se em brigas com Fagner e Belchior, Werner Herzog e Klaus Kinski, Tuíre Kayapó, sapatos, personagens de Manoel Carlos, passageiros aéreos, Camus e Sartre, Perón e Arthur Rubinstein, e chihuahuas. Penou com as árvores amazônicas, as monoculturas e desonerações, as vacas assassinas, e as Velhas Pragas de Monteiro Lobato. Cometeu falsificações e omissões com os macedônios, Machado de Assis, Michelangelo, uma planta mimética, Jonathan Swift, e as pulseiras Power Balance. Perdeu-se na Transnístria, no pânico da internet, nas contradições do TCU e do Senado, nas retratações de cientistas premiados, e na bagunça dos japoneses. Conjurou bruxas com papas, reis, e luteranos, protegeu-se com babosa, mudou com a nova geração de católicos, e sumiu com Greta Garbo e Paul Biya.
Separadas no feitiço: Fernanda Montenegro, fotografada por Antonio Guerreiro em 1978, e Silvana Mangano, em foto promocional do filme As Bruxas (Luchino Visconti, Franco Rossi, Mauro Bolognini, Pier Paolo Pasolini, e Vittorio de Sica, 1967).


O Almanaque fechou esse primeiro ano abraçado ao verme premiado C. elegans, a um filme de terror que matou para valer, à roupa suja, e a 1% do universo conhecido. Fez dupla com uma mariposa vascaína, os escritores Mann, as atrizes Joan e Olivia, as irmãs Galvão, o trambiqueiro Lustig, e a capa do álbum do Tom Zé. Desapareceu com a caatinga, o Mar de Aral, os sapinhos-pulgas, e Leny Eversong. E foi pelos ares com uma supernova, terroristas brasileiros, o Coringa do Alan Moore, as pipocas, e as lutas de celebridades.
O Ano I do Almanaque Semanal está oficialmente encerrado. O Ano II começa… na próxima semana. Obrigado aos leitores de curto, médio, e longo prazo.