Os almanaques eram publicações anuais que traziam de tudo, das fases da lua até remédio para unha encravada. Isto aqui é uma versão em pílulas semanais. Nesta edição: a rotação da Terra, festa-surpresa, a alma gêmea de um Fusca azul, frutas, óleo de lavanda, o genoma humano, o Petit, o Papa Francisco, e um suplemento especial ilustrado com as Ceias de Leonardo da Vinci, ou algo parecido.
Os indianos se referem à Via Láctea como o Ganges Celestial, que se estenderia pela barriga de um golfinho cósmico. Já na Espanha e em Portugal, pelo seu papel como guia de peregrinos, ela é o Caminho de Santiago.
Separados no carro vintage: o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, e seu Fusca azul modelo 1600 1987, e o candidato democrata à vice-presidência dos EUA, Tim Walz, no volante do seu International Harvester Scout modelo 1979. Um xeque árabe ofereceu um milhão de dólares pelo Volkswagen de Mujica em 2014.


No dia 7 de agosto de 1974, após 200 viagens contrabandeando 40 metros de cabos de aço 110 andares acima com a ajuda de seus amigos, o francês Philippe Petit atravessou o vão de 411 metros de altura que separava as torres gêmeas ainda não finalizadas do World Trade Center, em Nova York. Já havia cruzado de uma torre a outra na Catedral de Notre Dame de Paris (69 metros) em 71. Nas duas ocasiões, foi preso — em Nova York, para avaliação psiquiátrica. Saiu considerado são e famoso.
Durante milênios, a rotação da Terra vinha aumentando no mesmo ritmo quase imperceptível de sempre. Como esse ritmo acelerou a partir de 2000, já podemos afirmar que a rotação da Terra vem aumentando num ritmo quase perceptível. A perda das geleiras nos pólos vem contribuindo para isso, contrabalançando o efeito da Lua nas marés.
As três faces de Felipe Máximo: como o Ken Humano das redes sociais, ajudante de pedreiro, e frentista.
Óleo de lavanda tem sido muito mais eficaz para afastar mosquitos — e menos nocivo para os humanos — que os repelentes artificiais. O problema é que eles evaporam rápido. Porém, uma equipe de pesquisadores conseguiu fixá-lo de maneira duradoura em tecido de algodão.
Comer frutas e verduras in natura pode ter grande influência na retenção da cognição ao longo do envelhecimento. Pesquisa com cem pessoas acima dos 65 anos acaba de mostrar que o consumo de ácidos graxos insaturados presentes nesses alimentos foi muito mais decisivo para este resultado que condicionamento físico. Um estudo de 2021 com milhares de pessoas já havia demonstrado que maior consumo de antixoxidantes reduzia risco de doenças cognitivas.
Cerca de 75% do material final no ambicioso Projeto do Genoma Humano (1990-2003) pertence a uma única pessoa, o doador RP11. Essa sequência tem fundamentado estudos genéticos até hoje. O formulário de consentimento para doadores deixava claro que não mais que 10% de seu material genético seria usado no mapa final. RP11 é a Henrietta Lacks do genoma humano.
Segundos de sabedoria:
Se tem tromba de elefante, rabo de elefante, orelha de elefante, pata de elefante, só pode ser a indústria de apostas esportivas patrocinando campeonato de futebol brasileiro.
Uma festa de aniversário surpresa bem-sucedida começa pelo detalhe de o aniversariante gostar de surpresas. Na hora de organizar, é absolutamente importante ter em mãos a agenda do aniversariante, quase um stalking coletivo, para evitar dissabores na hora H.
O aspecto mais geracional é a derivada em que nós, millennials [geração nascida entre as décadas de 80 e 90], nos encontramos. Somos filhos de uma geração que avançou por décadas em uma derivada positiva , ou seja, uma curva ascendente de esperanças, expectativas, ideias de bem-estar, civilização e democracia. Crescemos dentro dessa ideia, mas depois nos vimos vivendo, como adultos, em uma derivada negativa. As crianças da Geração Z nem sequer tiveram nossa impressão, e não sei se isso as torna mais frágeis ou mais livres. Talvez mais frágeis. Nós millennials experimentamos a mudança em todos os sentidos: economicamente, dos direitos civis que pareciam se expandir indefinidamente quando eu tinha 18 anos, da democracia que deveria ser contagiosa em todos os lugares e, em vez disso, veja onde estamos.
O escritor italiano Paolo Giordano, em entrevista a Cristina Lacava.
Com poucas excepções, a atenção à literatura é considerada como algo não essencial. A este respeito, gostaria de afirmar que tal perspetiva não é boa. Ela está na origem de uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual dos futuros sacerdotes, que ficam assim privados de um acesso privilegiado, precisamente através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano.
Papa Francisco, em carta de 17 de julho de 2024 onde defende a literatura (e o prazer da literatura) na educação.
Há derrotas triunfantes que rivalizam com vitórias.
Michel de Montaigne, no ensaio “Sobre os Canibais”, em referência ao rei Leônidas nas Termópilas, mas poderia ser sobre a brasileira Marta.
Suplemento Ilustrado
A arte abaixo, obviamente, é A Última Ceia de Leonardo da Vinci, um parto concluído, após 3 anos, em 1498.
Foi uma encomenda do Duque de Milão, Ludovico Sforza, para o que seria o mausoléu da família no mosteiro de Santa Maria delle Grazie, mas o plano não foi adiante. Ficou no refeitório mesmo, acima da porta. Santas ceias em refeitórios de claustros estavam na moda na época. Veja-se, por exemplo, o afresco austero de Andrea Castagno para o refeitório do convento de Sant’Apollonia, em Florença, concluído em 1450.
A freira Plautilla Nelli usou esquema semelhante em pintura para o refeitório da Basílica de Santa Maria Novella, em Florença, na década de 1560. Como em Leonardo mais tarde, Judas é o mais escuro.
Leonardo provavelmente nunca viu o afresco de Castagno ou a pintura de Nelli porque ninguém era louco de deixar qualquer um entrar no claustro de um convento. Como a ceia de Castagno, a de Leonardo é um primor de invenção e profundidade, cada um se adaptando ao local da sua pintura. E ele lançou mão de outros truques, como a figura do Cristo ligeiramente maior que a dos outros apóstolos, uma distorção disfarçada pela luz que entra da janela ao fundo.
Leonardo escolheu a descrição da última ceia no Evangelho de João, que ele leu de uma Bíblia vulgata comprada por ele, segundo registros de seus bens, por volta da época em que estava trabalhando no mural. Sua temporada fazendo cenografia para peças na corte dos Sforza ajudou-o a desenvolver a cena com eletricidade dramática. Trata-se do momento imediatamente após Jesus dizer que um daqueles ali o trairá. Leonardo enche a cena com suspense e gestos. (Judas é o que se esquiva com grande risco à sua lombar.)




Com a abertura do mosteiro ao público e o advento do turismo de massa, a obra caiu no imaginário popular. Sua mistura de técnica, drama, simbolismo, potência espiritual, e rigor composicional inspirou trabalhos de outros artistas em variados estilos, como A Última Ceia no Deserto Vermelho (2008), do indiano Maqbool Fida Hussain.
Ou, de uma maneira mais sutil, a disposição das figuras no Terraço do Café na Place du Forum, Arles, à Noite (1888), do holandês Van Gogh. O foco central é o garçom vestido num branco diáfano. Como na ceia de Leonardo, há mais 12 figuras ao seu redor — uma está em pé (Judas?). Não há registro de que essa tenha sido, de fato, a inspiração.
O brasileiro Aleijadinho mandou às favas o número de personagens. Honrou os serviçais colocando dois garçons para assistir os comensais no seu conjunto de esculturas em tamanho natural (1795), localizadas numa das capelas do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas.
Já o chinês Zeng Fanzhi pôs de volta o tema da traição na sua recriação de 2001. No lugar de Jesus e apóstolos, estudantes com o uniforme tradicional dos Jovens Pioneiros da China numa sala de aula. Eles usam máscaras que escondem suas verdadeiras emoções — parte da sua série Máscaras, iniciada na década de 90. Além de se esquivar, como no original, Judas veste gravata amarela.
No contexto da história do Cristo, a última ceia é um evento de forte significado político: Jesus faz uma escolha radical pelo amor como resistência. Cada novo intérprete revisita essa ideia no seu próprio contexto histórico, seguindo à risca ou se contrapondo ao manual pictórico de Leonardo. Na leitura do baamiano Tavares Strachan de 2023, A Última Ceia (Galaxy Black), o imperador etíope Haile Selassiê faz jus à sua estatura de divindade caribenha e assume o lugar de Jesus, rodeado por figuras negras famosas dos Estados Unidos, mais um brasileiro, Zumbi dos Palmares. O próprio Strachan serviu de modelo para o Judas.
Na visão do palestino Sliman Mansour (1994), Jesus e seus discípulos são trazidos de volta à sua própria terra, dividindo a refeição em torno de uma mesa circular no telhado de uma típica casa da região. Aqui, o ponto de vista é o de um pássaro. As oliveiras ao fundo são uma assinatura de Mansour, cujo ateliê está localizado em Ramallah, na Cisjordânia. Trata-se de uma árvore nativa, em oposição aos ciprestes (também representados ao fundo) e pinheiros plantados pelos ocupantes israelenses.
Em 1999, o israelense Adi Nes revisitou todos os personagens como soldados israelenses para a sua foto. Reunidos numa casa crivada de balas, os soldados se divertem alheios à realidade, enquanto Jesus tem o olhar perdido no horizonte. Há um décimo-quarto personagem em pé, solitário, o único com o emblema das Forças de Defesa Israelenses no uniforme. A leitura da cena é complicada por uma forte carga homoerótica nas interações dos belos rapazes — Nes é abertamente homossexual.
Essa ideia de inclusão pode causar alvoroço. Em 2007, a Folsom Street Fair, feira que reúne fetichistas sadomasô de San Francisco, anunciou o evento daquele ano com o que parecia um Jesus negro e musculoso rodeado por amantes de couro, utensílios sexuais de todo tipo, e uma drag queen. Um pastor episcopal defendeu a inciativa.
Um aspecto ausente da pintura senhorial de Leonardo é a identidade de pária de Jesus e sua turma no texto bíblico. Sob essa perspectiva, essas novas interpretações resgatam a característica subversiva dos personagens. Lá em 1998, a fotógrafa sueca Elisabeth Ohlson Wallin iniciou a sua série Ecce Homo com um Jesus transgênero, ladeado por drags. Novamente, Judas desaparece completamente sob a ideia de amor incondicional.
Na sua ceia (2024), a pernambucana Elvira Freitas Lima tornou Jesus mulher negra, com discípulos de várias etnias e gêneros, e o vinho se fundindo ao sangue, uma referência à eucaristia.
Não deixa de ser uma volta às figuras femininas da Ceia de Leonardo, que inspiraram a teoria da conspiração a mover o romance O Código Da Vinci (2003), de Dan Brown: São João, o mais doce dos apóstolos, seria na verdade Maria Madalena. Brown bebeu também de O Segredo dos Templários (1998), de Lynn Picknett e Clive Prince.
Para essa teoria prosperar, outros artistas e toda a torcida do Corinthians não poderiam estar a par do segredo. Volte lá em cima e verifique o São João em Castagno e Nelli. O apócrifo Evangelho de Felipe, encontrado numa caverna em 1945, imaginava Maria Madalena como companheira de Jesus. E Fra Angelico a colocou explicitamente numa Ceia (1441) do Convento de São Marco, em Florença, sem incorrer em heresia.
A teoria de Brown também teria que ignorar duas outras figuras andróginas na cena de Leonardo: Tiago Menor, na extrema esquerda, e Felipe, no trio logo à direita de Jesus.


Leonardo a-do-ra-va uma figura andrógina. Felipe pode ter sido o mesmo modelo da versão da Virgem dos Rochedos (1495-1508), finalizada por assistentes do artista, na National Gallery de Londres.
Há também o São João Batista de 1513-16.
Toda essa riqueza simbólica seria usada de todo jeito assim que A Última Ceia caísse nas graças da cultura de massa, que ressignifica, precifica para consumo e dilui o valor de qualquer coisa. Andy Warhol capturou isso bem na sua série da década de 1980 sobre o mural de Da Vinci.

O pulo para a leitura irônica já havia sido feito na década anterior, quando o diretor Robert Altman retratou o niilismo da guerra em M*A*S*H. (1970). Numa cena, um grupo de profissionais de um hospital móvel do Exército dos EUA na Guerra da Coreia promove uma última ceia para um colega dentista que quer se suicidar ao se descobrir impotente. Eles o enganam dando-lhe apenas um sedativo para anestesiar-lhe o espírito.
No início do século XXI, virou uma febre. A fotógrafa norte-americana Annie Leibovitz deu o salvo de largada com esta imagem da família de mafiosos da série Os Sopranos numa edição de 1999 da revista Vanity Fair. Livia (Nancy Marchand), a mãe de Tony Soprano (James Gandolfini), esquiva-se como Judas repetindo seu papel na trama.
Vários filmes e séries do período repetiram o esquema “ceia de Leonardo” por provocação, moda, ou deboche, sem qualquer conexão mais profunda entre os personagens e o mural original. A releitura mais descarada pertence ao filme Os Mercenários 2 (Simon West, 2012), com astros de ação fortemente armados em torno de Sylvester Stallone.
Exceção a essa tendência niilista, a série de ficção científica Lost, repleta de mistérios à la Código Da Vinci, divulgou foto promocional (2010) da última temporada com sugestões sobre o destino dos personagens.
Das inúmeras releituras das duas primeiras décadas do século XXI, a que mais dialogou com o original foi a foto promocional para a quarta temporada da série Battlestar Galactica em 2004. Se a Ceia de Leonardo aludia à fé como salvação, a trama de ficção científica envolvia uma raça de andróides sencientes que usaram violência extrema em nome de uma religião vista como superior. Humanos e andróides estão representados na foto — no lugar de Jesus, a zelota Número Seis (Tricia Helfer) — improvisada pelos atores na hora do clique a mando do fotógrafo. Um dos assentos foi deixado deliberadamente vazio para a revelação da identidade de um personagem crucial num futuro episódio da série.
Passada essa febre, e com o advento dos programas de inteligência artificial de criação de imagens, a massificação da Ceia se completou. Transformou-se numa Mona Lisa, um lugar-comum também de Da Vinci, ao gosto do freguês…
…até um momento da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris de 2024.
A cena não foi inspirada em Leonardo, mas sim nas festas pagãs gregas, berço das Olimpíadas, como explicou o criador da cerimônia, Thomas Jolly. O cantor azul na bandeja é o deus Dionísio. A DJ Barbara Butch, com um halo na cabeça, evocaria imagens clássicas de Apolo, o deus-sol.
Uma das referências citadas foi A Festa dos Deuses (1635-40), do holandês Jan Harmensz van Biljert, um seguidor do italiano Caravaggio. Repare no halo atrás da cabeça de Apolo, e no clima de bacanal inclusivo.
E aquelas pessoas todas montadas olhando para a câmera remetem ao clima circense dos filmes de Federico Fellini, como Satyricon de Fellini (1969).
Apesar disto, A Última Ceia de Leonardo é a obra mais lembrada por quem viu, especialmente por conservadores de todo mundo em busca de faíscas para mais uma batalha cultural. Pode-se, no máximo, acusar os organizadores da cerimônia de Paris de falta de imaginação ao ignorar a confusão potencial com a referência mais óbvia — mas não se pode imputar a eles falta de criatividade. E ainda renovaram indiretamente o vigor apagado da obra de Leonardo.
Sacrilégio mesmo foi o que fizeram com Louise Michel. A célebre feminista e anarquista da Comuna de Paris foi homenageada com uma estátua às margens do rio Sena para dar peso moral a um evento capitalista que ocorre de quatro em quatro anos. Dias depois, contrariando tudo o que ela representa, o Comitê Olímpico desclassificou a refugiada afegã Manizha Talash por vestir uma capa com a mensagem “Libertem as Mulheres Afegãs” em protesto contra a repressão do Talibã.
Assim como A Última Ceia de Leonardo, Louise Michel estará em breve numa lojinha de souvenires perto de você.