
Os almanaques eram publicações anuais que traziam de tudo, das fases da lua até remédio para unha encravada. Isto aqui é uma versão em pílulas semanais. Nesta edição: refeições com estranhos, a maldição dos haitianos, os sonhos da Rádio Nacional, os conselhos da Julieta, a receita da Babilônia, a volta do osso e dos tupinambás, e o bebê do Distrito Federal.
Você mora em Paris e pretende entrar para uma nova rede social. Mas há uma condição: antes de adicionar alguém à sua lista de contatos, você precisa se inscrever numa lista de espera.
Deve, então, tomar parte em um encontro virtual de 90 minutos com gente de todo tipo e toda parte do mundo. Responderá a duas perguntas bem pessoais, daquelas que talvez não tolerasse nem do seu amigo mais íntimo. Ou você participa de um jantar no mundo real, com outros estranhos de carne e osso. Durante a refeição de umas três horas, você e os outros convidados vão responder ali ao vivo, cara a cara, olho no olho, não a duas mas a três perguntas pessoais consecutivas. Esses eventos se repetirão periodicamente.
A ideia é que você não poderá fazer outros amigos online além daqueles dos eventos presenciais. Você aprende que a pessoa do outro lado da tela tem um rosto, era a pessoa do outro lado da mesa, e vai pensar duas vezes antes de jogar pedra na geni porque estabeleceu com ela uma conexão mais profunda que o praxe internético.
Essa rede social chama-se Black Elephant, projeto de 2020 de Felix Marquadt, ex-diretor de comunicações do Herald Tribune, ex-consultor, e ex-figurinha carimbada do Fórum Econômico Mundial de Davos. Marquadt idealizou seu elefante negro como uma rede física complementada pela rede virtual, ou seja, uma roupagem nova, turbinada para o roteiro original da socialização entre humanos: primeiro se encontram e se conhecem, depois trocam modos de contato. A rede já congrega gente de 25 países, da França ao Congo, do Líbano aos EUA.
“Menos mensagens de texto, mais degustação” é o slogan de um concorrente, o aplicativo de jantares com estranhos TimeLeft.
Agora você já pode comer como os antigos babilônios! Um chef de origem síria, Mohamad Hafez, resolveu testar as receitas contidas no mais antigo livro de culinária conhecido, uma placa de argila mesopotâmica de 4 mil anos de idade, em exposição no Museu Yale Peabody (EUA). Hafez não recomenda o caldo leitoso de cordeiro, que faria a nossa maniçoba parecer uma top model. Porém, o ensopado de cordeiro com cerveja e beterraba é uma iguaria dos deuses que você pode tentar em casa. Tempo de preparo: duas horas.
Em 1949, o historiador Arnold Toynbee escrevia em A Civilização em Julgamento que a união das várias sociedades ocidentais se deu por meio de uma estrutura de materiais menos duráveis que os de um recife de corais. “O ingrediente mais óbvio é a tecnologia, e o homem não pode viver só de tecnologia.”
Uma das consequências do isolamento forçado da pandemia de covid-19 foi o ressurgimento, inclusive entre jovens, dos clubes de correspondência ou pen pals, pessoas que escrevem cartas tradicionais para estranhos noutras cidades ou países. Hoje, há sites em que se pode procurar novos correspondentes para começar uma amizade epistolar e treinar os dotes literários.
Você, coração apaixonado em busca de orientação nos meandros inescrutáveis do amor, pode escrever para uma especialista no assunto, a nobre Julieta, aquela do Romeu. Shakespeare a enterrou ficcionalmente no convento de San Francesco al Corso, nos arredores de Verona, Itália. Em 1930, os responsáveis pelo convento criaram uma tumba de verdade para a moça. Em 1972, um grupo de voluntários fundou o Clube da Julieta para responder às milhares de missivas que chegavam de todas as partes do mundo. As respostas em português ficam a cargo de Andreia Caetano, de Jacareí (SP).
O grande retorno. A fadiga com redes sociais também fez o aumento das vendas de celulares menos sofisticados, os dumbphones (telefones burros), entre os jovens. O consumo de discos de vinil e de máquinas fotográficas voltou a crescer. Parker Edmondson, 23 anos, faz sucesso no TikTok usando tecnologias arcaicas.
A fabela lateral, um ossículo dentro de um tendão na articulação do joelho, fez história e agora faz sua grande volta. Cientistas suspeitam que ele foi fundamental para que os hominídeos se levantassem e começassem a andar eretos. Cerca de 39% da população humana tem esse osso hoje. Há um século, eram só 11%. Isso talvez se deva ao fato de que estejamos ficando maiores, o que aumentou o estímulo mecânico na região. A má notícia é que a fabela lateral é muito comum em quem sofre de osteoartrite.
Aqui se faz, aqui se sonha! Não por outro motivo, o psicanalista Gastão Pereira da Silva resolveu popularizar a sua especialidade estreando o programa No Mundo dos Sonhos na Rádio Nacional em 1947. Todos os sábados, por três anos, os espectadores mandavam cartas com seus sonhos para que fossem lidos pelos astros da Nacional. Assim, Brandão Filho (o primo pobre do humorístico Balança Mas Não Cai) podia interpretar um apostador crente que ia dar gato no jogo do bicho. Ou Mário Lago contava as agruras de um cidadão que sonhou com uma estrela de cinema desaparecida. Depois, o escafandro do Dr. Gastão (efeitos sonoros de bolhas n’água) descia às profundezas oníricas para fazer a interpretação.
Dreamworld (Mundo dos Sonhos) também era o nome da espetacular fazenda do magnata norte-americano Thomas F. Lawson, o “rei do cobre” e um dos homens mais ricos dos EUA no início do século XX. Lawson revitalizou a superstição da sexta-feira 13 com um romance. Sexta-Feira 13 (1907) conta a história de um corretor de Wall Street que se vinga de seus inimigos manipulando ações da bolsa para deixá-los na miséria. Na vida real, Lawson também manipulou o mercado financeiro e morreu na miséria. E, depois de sua morte, ele ou alguém mais andou batendo portas e movendo latas na sua mansão, segundo testemunhas oculares.
Separados no berço: o empresário e governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, e o bebezão Boh, filho mimado da megera Yubaba em A Viagem de Chihiro (Hayao Miyazaki, 2001).


Em 1994, a Comissão Parlamentar de Inquérito do Congresso Nacional concluiu sua investigação de fraudes na destinação de recursos do orçamento federal por parlamentares. Terminou com seis cassações e quatro renúncias, entre elas a do deputado João Alves de Almeida, que atribuía sua fortuna a Deus por lhe ter dado muitas vitórias na loteria.
Desde 2020, o Congresso Nacional passou a dispor de bilhões extras em recursos do orçamento federal, mesmo após a aprovação da lei orçamentária, por meio das emendas do relator (as RP9). Uma característica dessas emendas é a ocultação dos nomes dos parlamentares e a falta de transparência na distribuição dos valores, daí o apelido Orçamento Secreto. Apesar de todas as denúncias de corrupção e tentativas do Judiciário de parar o esquema, ele resiste. Nenhum deputado foi preso ou cassado nem dedicou sua fortuna a Deus ainda.
Ser haitiano nos EUA:
Década de 1970: aqueles que fugiam da ditadura Duvalier eram presos e tinham seus pedidos de asilo negados mesmo que preenchessem todos os requisitos, ao contrário dos cubanos mais clarinhos.
Década de 80: como alguns dos primeiros soropositivos identificados eram imigrantes haitianos, o governo e a imprensa passaram a chamar a AIDS de Clube 4H (hemofílicos, homossexuais, heroinômanos, e haitianos), embora a pesquisa que tenha rastreado a origem da epidemia no Haiti tenha diversos buracos.
Década de 90: presos em Guantánamo sob suspeita de serem soropositivos.
2024: alvo de nova teoria conspiratória, insuflada por Donald Trump e seu candidato a vice-presidente, J.D. Vance, segundo a qual estariam comendo animais de estimação dos moradores de Springfield, Ohio — tudo baseado numa fofoca que uma mulher ouviu de uma amiga que ouviu de…
Por mais de século, todos pensavam que os tupinambás tinham desaparecido da face da Terra, resultado da colonização e da conversão forçada ao catolicismo, que provocava a omissão de sua etnia nos registros oficiais. Até que, num dia de 2000, Nivalda Amaral de Jesus, conhecida como Amotara, subiu no palanque do evento indígena Brasil Outros 500 e anunciou: “Eu sou tupinambá.” No ano seguinte, a FUNAI reconheceu como tupinambás os membros de uma comunidade em Olivença (BA).
As crianças percebem o tempo de maneira mais lenta que os adultos, todos sabemos. Do ritmo do coração ao declínio dos nervos ópticos, muita coisa contribui para isso. Uma delas é a rotina rígida a que somos submetidos depois de crescidos. Quanto mais nos orientamos para o futuro, quanto mais precisamos lidar com uma vida de tédio e estresse crescentes, mais o tempo parece passar mais rápido e só Carolina não viu.
Em agosto, morreu uma das metades do power couple gay do Aquário de Sydney, Austrália. Sphen deixou dois pequenos pinguins (adotados) que criava com seu companheiro, Magic. No dia da morte de Sphen, Magic foi levado para vê-lo e entender por que seu parceiro não voltaria mais. Depois, os outros pinguins o acompanharam num canto elegíaco. Os funcionários do aquário concordam que foi uma das cenas mais emocionantes que já presenciaram. Não há notícias de vídeos do momento gravados em celulares, o que é sensato. Nenhum registro conseguiria se igualar às imagens que você está criando na sua cabeça ao ler este parágrafo.

Só fui à falência duas vezes: quando ganhei uma causa, e outra quando perdi.
Anônimo, geralmente atribuído a Voltaire.
A única coisa que eu lamento sobre meu passado é o tamanho dele. Se eu pudesse voltar no tempo, cometeria os mesmos erros, só que mais cedo.
A atriz Tallulah Bankhead, em sua autobiografia de 1952.
Tudo isso aconteceu antes e vai acontecer de novo.
Narrador da animação Peter Pan (1953). Direção de Hamilton Luske, Clyde Geronimi, e Wilfred Jackson. Roteiro de Ted Sears, Erdman Penner, Bill Peet, Winston Hibler, Joe Rinaldi, Milt Banta, Ralph Wright, e Bill Cottrell, a partir do romance Peter and Wendy (1911), de J.M. Barrie.