Em 1964, isto é, há 60 anos, as Forças Armadas apearam o presidente eleito João Goulart do poder com o apoio de empresários, intelectuais, e do governo norte-americano. A operação foi chamada pelos conspiradores de “Revolução Redentora”, embora poucos tenham se redimido até hoje. Este almanaque especial apresenta sessenta instantâneos do período 1964-85 em duas partes. A segunda está aqui. Esta é a primeira.
Tentativas de golpe dos militares brasileiros (bem e malsucedidas):
1889, 1891, 1930, 1937, 1945, 1954, 1964, 2022-23
A opinião pública antes e depois do golpe girava mais que biruta. Em pesquisa de março de 64 numa metrópole (São Paulo) e duas cidades do interior (Araraquara e Avaí), o presidente-estancieiro João “Jango” Goulart gozava de boa popularidade (média acima dos 40% de bom e ótimo; mau e péssimo abaixo dos 20%); e suas reformas de base – um pacote de mudanças agrárias, urbanas, institucionais – idem, com exceção do direito de voto aos analfabetos. Por outro lado, 44% dos paulistanos tinham medo do perigo comunista, apregoado em jornais, rádio e televisão. Em maio de 64, 54% eram a favor da deposição de Goulart e 70% estavam otimistas com o futuro. Em fevereiro de 65, na Guanabara, 46% estavam insatisfeitos com o governo Castelo Branco. A maioria (75%) queria eleição direta, que nunca veio.
“O que impressiona, mesmo aos historiadores, é como uma ação golpista efetiva, que se anunciava havia, pelo menos, dois anos, conseguiu surpreender a todos”, escreveu o historiador Marcos Napolitano. Eram tantas facções conspirando que o embaixador dos EUA, Lincoln Gordon, saiu fazendo pesquisa para saber quem apoiar. O pessoal do general Humberto de Alencar Castelo Branco, futuro presidente do regime, não era o mesmo do general Mourão, que cansou de esperar pelo sinal verde, do governador Magalhães Pinto ou de quem quer que fosse, e marchou com a tropa de Minas Gerais para tomar o Forte de Copacabana no Rio.


Tecnicamente, Olympio Mourão Filho esteve envolvido em dois golpes de estado. O primeiro fora em 1937. Como capitão do Exército e chefe do serviço secreto integralista, redigiu o Plano Cohen – com esse nome porque na época todo reacionário via os judeus como comunistas – como um “exercício teórico” onde a Ameaça Vermelha tomava o poder no Brasil. Foi vendido como verdadeiro a Getúlio Vargas, que o usou como pretexto para o autogolpe do Estado Novo.
Não existiu golpe nem revolução no 31 de março de 1964. O regime militar começou no Primeiro de Abril, quando as forças de Mourão tomaram o Forte de Copacabana, no Rio. No meio-dia da véspera, esse pessoal estava almoçando no quartel. Na manhã seguinte, o Destacamento Tiradentes encontrava-se na divisa de Minas Gerais, esperando que o resto da caserna aderisse ao movimento.
No fim da tarde do 31 de março, o comandante da Base Aérea de Santa Cruz (RJ) entrou num jatinho Paris da FAB e foi tentar encontrar a tropa de Mourão debaixo de chuva pesada para dar-lhes um susto. Embicou num rasante sobre o “Destacamento Tiradentes”. Saiu todo mundo correndo para o mato. O piloto não deu tiros pois o Paris não tem armas.
Em 8 de fevereiro de 2024, a Polícia Federal chegou ao 1º Batalhão de Operações Psicológicas do Exército, em Goiânia, para fazer buscas numa operação que investigava a tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro de 2023. Ao ver a polícia, o comandante do batalhão, que era um dos alvos da operação, desmaiou.
O escritor Carlos Heitor Cony estava convalescendo após uma cirurgia quando o poeta Carlos Drummond de Andrade chamou-o para dar uma volta no Primeiro de Abril e ver a movimentação ali pelo Forte de Copacabana.
“Sensação geral de alívio”, registraria Drummond em seu diário.
Já Cony escreveria em sua crônica de 7 de abril no Correio da Manhã: “Nessa altura, há confusão na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, pois ninguém sabe ao certo o que significa ‘aderir aos rebeldes’. A confusão é rápida. Não há rebeldes e todos, rebeldes ou não, aderem, que a natural tendência da humana espécie é aderir.”
Thomas C. Mann, Secretário de Estado Adjunto dos EUA: “Espero que o senhor esteja tão feliz como eu a respeito do Brasil.”
John F. Kennedy, Presidente dos EUA: “Estou.”
A tomada do poder de 64 teve o patrocínio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.
Muitos golpes são aplicados dentro das quatro linhas – segundo aqueles que as desenham. Atropelando a Constituição de 1946, o presidente do Congresso Nacional, Ranieri Mazzilli, declarou a Presidência da República vacante com o presidente ainda em solo pátrio (no Rio Grande do Sul) e sem submeter a decisão ao plenário no 2 de abril.
O primeiro presidente do regime, o general Castelo Branco, costumava se referir aos civis que pressionaram, intermediaram, financiaram e ajudaram a planejar o golpe como “vivandeiras”. Uma delas, de primeira hora, era o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, eterno candidato presidencial esperançoso de ver chegar sua vez na base da radicalização. Em 1965, rodou a Europa para promover o regime. Em 1967, uniu-se aos arquiinimigos – e ex-presidentes – João Goulart e Juscelino Kubitschek contra o regime.
Separados no berço: Carlos Lacerda, o inimigo dos comunistas, e Flavio Cavalcanti, o popular apresentador de programas de auditório cuja visão de mundo (quase sempre) se alinhava com o conservadorismo militar.


A estratégia de Castelo Branco para debelar a inflação de mais de 90% do governo Goulart foi comprimir salários, facilitar a entrada de capital estrangeiro, e aumentar a receita tributária. O país se tornou atraente ao capital estrangeiro com o empurrãozinho do governo norte-americano por meio de sua agência de fomento, a USAID. O regime militar modernizou o sistema tributário, arrecadando com mais impostos, que caíram nas costas da classe média mas não nas dos mais ricos.
A poeta norte-americana Elizabeth Bishop, defensora da derrubada de Goulart, desconfiava da ênfase da esquerda em reforma agrária “como se qualquer um com juízo fosse contra a reforma agrária no Brasil.” E havia ao menos um general linha-duríssima a favor da redistribuição de terras como fator de desenvolvimento nacional: o nacionalista e anticomunista convicto Afonso Augusto de Albuquerque Lima, Ministro do Interior de Costa e Silva. Em 1969, o general foi à TV Excelsior defender a reforma agrária — e o autoritário Ato Institucional nº 5 como forma de promovê-la. Dez anos depois, ainda estava convencido disso.
Mensagem de Castelo Branco (1964): “Não havendo estímulos especiais para o aumento da produtividade (…) a propriedade da terra, ao invés de se ligar à sua exploração agrícola, à sua utilização, converte-se na apropriação com intuito especulativo (...) A experiência universal mostra que a modificação da estrutura agrária dos países que realizaram reformas agrárias bem-sucedidas, cria condições novas para o trabalho rural e força a modificação dos sistemas creditícios, assistencial e de mecanização.” O Congresso Nacional rechaçara a reforma agrária de Jango, mas aprovou a de Castelo. A pressão latifundiária garantiu que o Estatuto da Terra não saísse do papel.
Cronologia da ditadura lenta e gradual:
Ato Institucional de 64: cassação de mandatos políticos. Redigido por Francisco Campos, aquele mesmo da Constituição autoritária do Estado Novo (1937).
AI-2 de 65: confirmação das eleições indiretas para presidente, bipartidarismo em vez de pluripartidarismo, possibilidade de estado de sítio por 180 dias sem consulta ao Congresso.
AI-3 de 66: eleições indiretas para governadores — porque a oposição havia levado cinco estados nas eleições de 65 — e prefeitos escolhidos de nomeação por governadores, nenhuma possibilidade de contestar essas ações no Judiciário.
AI-4 de 67: convocação do Congresso Nacional para votar a Constituição da “Revolução”.
AI-5 de 68: poderes para o presidente fechar o Congresso Nacional e as assembleias legislativas estaduais e cassar quaisquer mandatos eletivos, oficialização da censura, e, baseada “no respeito à dignidade da pessoa humana”, suspensão de todas as garantias constitucionais. Todas.
Numerologia: foram 17 os atos institucionais. Durante todo o período da ditadura, 17 militares, da ativa ou da reserva, ocuparam pastas civis no governo. O governo Bolsonaro (2019-22) teve dez.
Deposto Goulart, que assustava a direita e decepcionava a esquerda, o regime precisava manter o bicho-papão vivo. E o aparato de segurança foi atrás das provas do perigo comunista. Valia tudo. Ainda em 64, a polícia apreendeu o equipamento de filmagem de Cabra Marcado para Morrer, a reencenação de Eduardo Coutinho para o assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira. Alardearam que se tratava de armamentos de “revolucionários cubanos”. Agulhas de acupuntura serviram de evidência de uma conspiração comunista chinesa, tão descabelada que o processo seria arquivado pela Justiça Militar em 1969. O Ministério da Educação inventou uma cartilha, Como Eles Agem, com citações falsas de Lênin e planos vermelhos para desmoralizar a juventude com as drogas — não muito diferente do que circula no WhatsApp hoje.
Espionagem comunista, de fato, havia, mas nada que pudesse justificar um golpe. Os tchecos tinham uma rede de informação no país desde a década de 1950. No entanto, era tão ruim que não fazia ideia do golpe em curso. O segundo-secretário da embaixada da Tchecoslováquia, que achava os brasileiros primitivos, foi dedurado por um informante que lhe prometera documentos secretos em maio de 64. Foi convidado a abandonar o país, Castelo Branco abafou o caso e nada mais houve. A qualidade da inteligência tcheca pode ser medida nesta informação de um relatório: “os brasileiros reconhecem como cozinha típica somente a cozinha baiana”, que “pode levar à enfermidade”.
Guerrilha, guerrilha mesmo, essas só apareceram nos idos de 1966. Nesse quesito, o ex-deputado federal Leonel Brizola começou com orçamento de grande estúdio. Do seu exílio, no Uruguai, angariou apoio de Fidel Castro e abriu três frentes revolucionárias: uma no sul do Maranhão; outra no Mato Grosso, na fronteira com a Bolívia; e a terceira e mais famosa, na serra de Caparaó, entre Minas e Espírito Santo. As duas últimas se acabaram no início de 1967. A de Caparaó era hollywoodiana: guerrilheiros loiros de olhos azuis que fumavam cigarros Continental e não dispensavam uma refeição de feijão com arroz. Foi-se numa semana sem que um tiro fosse disparado.
A Ação Libertadora Nacional (ALN) de Carlos Marighella estrearia no Rio em novembro de 68 com uma série de assaltos espetaculares. A ação armada contra o regime intensificara-se, mas policiais e militares também tocavam o terror de direita como pressão para o regime endurecer. Uma célula paramilitar, com o Ministro da Justiça como mentor, arrastou os atores da peça Roda Viva dos camarins do Teatro Ruth Escobar até a rua, inclusive a atriz Marília Pêra nua, para espancá-los.
Fez fama o grupo paramilitar de Sábato Dinotos, ou Dino Kraspedon, ou Dunatos Menorá, ou Aladino Félix, autoproclamado messias do povo judeu, arauto do Apocalipse, e mensageiro da Nova Era com o apoio de uma civilização extraterrestre em Júpiter. Comandou 14 membros da Força Pública (antigo nome da PM de SP) em 14 atentados a bomba, os campeões no período, além de roubos de armas da própria corporação. Com as bênçãos de um general da reserva, Paulo Trajano, colocaram uma bomba no QG do 2º Exército para alertar os militares sobre uma conspiração de esquerda contra Costa e Silva.
Em 30 de abril de 1981, oficiais do DOI-Codi planejaram um atentado a bomba no centro de convenções Riocentro, onde acontecia um show para um público de 20 mil pessoas. A ideia era culpar os comunistas. Um dos artefatos não detonou; o outro explodiu literalmente no colo de um dos militares dentro do carro.
Em dezembro de 2022, um apoiador do presidente Bolsonaro, inconformado com sua derrota nas eleições daquele ano, planejou explodir uma bomba no estacionamento do Aeroporto Internacional de Brasília “para provocar a intervenção das Forças Armadas e a decretação de estado de sítio para impedir instauração do comunismo [no] Brasil”.
Aladino Félix também era famoso como o autor do livro A Antiguidade dos Discos Voadores (1967), quase três décadas antes do DVD Homossexualismo, Aborto e Depravação Moral; Discos Voadores e Extraterrestres, do pastor Silas Malafaia.
Em 1975, o Exército Brasileiro tinha 73 marechais e 3500 generais na reserva, como Paulo Trajano. Segundo levantamento de 2023, há em torno de 4200 generais na reserva ou aposentados contra 175 na ativa.
Pouco antes da reunião do Conselho de Segurança que sacralizaria o AI-5 e tornaria o golpe uma ditadura de fato e de direito, a pressão arterial do presidente-general Costa e Silva estava em 20 por 13.
Erico Veríssimo era um dos escritores mais populares do Brasil no exterior quando lançou Incidente em Antares (1971), uma sátira política de realismo mágico em que um grupo de mortos em decomposição contava os podres dos vivos. Desancava de caudilhos a generais. Para passar pela censura, a Editora Globo de Porto Alegre armou a campanha preventiva da foto abaixo. Deu certo. O livro passou sem cortes, após leitura de trechos por generais, e ainda foi adotado pela Academia Militar das Agulhas Negras.
A ação principal de Incidente em Antares se passa em 13 de dezembro de 1963. O AI-5 foi decretado em 13 de dezembro de 1968.
Pouco mais de seis meses depois de decretar o AI-5, Costa e Silva sofreu uma trombose cerebral e foi afastado da presidência. Morreu vítima de infarto não no dia 13 mas no 17 de dezembro de 1969.
Basta juntar ‘militar’ a qualquer palavra para fazê-la perder o sentido. A justiça militar não é justiça assim como a música militar não é música.
Georges Clemenceau, primeiro-ministro francês de dois mandatos (1906-9, 1917-20).