Os almanaques eram publicações anuais que traziam de tudo, das fases da lua até remédio para unha encravada. Isto aqui é uma versão em pílulas semanais. Nesta edição: sangue, fofoca e lágrimas com Belchior, Fagner, Sartre, Camus, Herzog, George W. Bush, Gabriela Duarte, Kinski, Perón, Rubinstein, Xi Jinping, Lampião, chihuahuas, nômades da estepe, Tuíre Kayapó, Hitchens, Rushdie, Le Carré, Walcott, e Zenão da tartaruga.
Décadas antes de uma cadeira se tornar a estrela de uma briga num debate para prefeito de São Paulo, uma sua prima separou outra peleja. Belchior e Raimundo Fagner sempre foram parceiros voláteis: olhou de mau jeito, o clima podia encrespar. “Briga mesmo, de porrada”, relembrou Fagner certa vez. E por qualquer coisa: um casaco, um pastel dormido, um atraso. Assim que, quando o compositor Jorge Mello pegou os dois no meio de um duelo a faca na quitinete que dividia com Belchior em cima do cine Lido, em Copacabana, não teve dúvidas e arremessou uma cadeira para apartá-los.
Mais intensa foi a amizade/colaboração entre o diretor Werner Herzog e o ator Klaus Kinski. Conheceram-se em Munique, quando o jovem ator Kinski morou três meses, de caridade, na mesma pensão onde estavam o adolescente Herzog e sua família. Foi a própria mãe de Werner quem botou Kinski para fora depois do enésimo ataque de loucura — e da destruição de um banheiro. Anos depois, Herzog sabia onde estava se metendo quando chamou Kinski para estrelar Aguirre, A Cólera dos Deuses (1972) em locação no Peru. Lá, Kinski atirou contra extras e atacou outro, salvo pelo capacete, com uma espada. Faltando duas semanas para o término das filmagens, pegou suas coisas e disse que ia embora. Herzog calmamente avisou-lhe que iria matá-lo se fosse embora dali; Kinski não pagou para ver. Uma década depois, durante as filmagens de Fitzcarraldo (1982) na Floresta Amazônica, um chefe da tribo Asháninka Campas, que trabalhavam como extras, ofereceu-se ao diretor para matar Kinski. “Eu educadamente recusei”, Herzog relembraria.

Breve arqueologia de objetos arremessados em confrontos
Cadeira como método pavloviano de ensino de música em Whiplash: Em Busca da Perfeição (Damien Chazelle, 2014). A cena se baseia na lenda de que o baterista Jo Jones teria jogado um címbalo na cabeça de Charlie Parker, a um passo da decapitação.
Cadeira com rival e tudo em Por Amor (Manoel Carlos, 1997-98).
Cadeira como contra-ataque da parlamentar senegalesa Amy Ndiaye Gniby, em reação ao tapa desferido por um colega de oposição, Massata Samb, durante sessão orçamentária em Dacar em 2022.
Um par de sapatos como comentário político arremessado pelo jornalista Muntadhar al-Zaidi contra a cabeça do presidente norte-americano George W. Bush durante entrevista coletiva em Bagdá, Iraque, em 2008. O calçado provou ser versátil para externalizar opiniões contrárias, tendo sido usado contra a secretária de estado dos EUA Hillary Clinton, o presidente chinês Wen Jiabao, o diretor do FMI Dominique Strauss-Kahn, o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, o presidente de Taiwan Ma Ying-Jeou, e o dirigente paquistanês Pervez Musharaf.
Uma caneca como discussão de relacionamento no início de Ele Disse, Ela Disse (Ken Kwapis & Marisa Silver, 1991).
E o que acontece quando as cadeiras estão grudadas no chão? Pugilato! A pressão não descarregada da pandemia, o espaço cada vez mais apertado, e a via crúcis dos aeroportos podem ter influência no comportamento dos passageiros. De qualquer modo, as rusgas em aviões só fizeram crescer nos últimos anos. Em 2022, a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) registrou 585 casos de indisciplina de passageiros, quase o dobro de 2019. Em 2023, foi uma média de dois episódios do tipo por dia (735 ocorrências).
Segundos de sabedoria
Mais vale uma cadeira na mão do que duas voando.
Contestar teorias da conspiração com checagem de fatos e selos de desinformação não vai converter radicalizados, segundo alguns estudos. Porém, uma boa e velha conversa com amigos, ou até com um chatbot cuidadosamente treinado podem produzir melhores resultados. Também ajuda a educação preventiva, isto é, ensinar as pessoas a analisar a veracidade das informações.
Os anciões do Partido Comunista Chinês pensavam fazer um líder sob seu absoluto controle quando pescaram, em 2007, o secretário do partido na província de Zhejiang para servir na mesma função em Xangai, vitrine política. A alternativa indigesta a Xi Jinping era o espalhafatoso Bo Xilai. Deu ruim. Hoje, Bo está preso e os anciões perderam seu poder, defenestrados ou calados por investigações de corrupção. Como ponto alto dessa humilhação, Hu Jintao, o líder do grupo que colocou Xi no mapa, foi escoltado para fora de uma sessão do Partido em 2022 em frente às câmeras, supostamente por não se sentir bem. O escolhido Xi virou líder perpétuo, com poder absoluto.
A cidade de Phoenix, Arizona (EUA), viveu momentos de terror em fevereiro de 2024. Uma gangue de baderneiros saiu pelo bairro de Maryvale defecando nas ruas, fazendo barulho a qualquer hora do dia, e botando crianças para correr. Apesar da baixa estatura, conseguiam levar para o mal caminho muitos maiores que eles. Nunca se viu uma gangue de chihuahuas tão feroz.
A expressão “arranca-rabo” tem origem há uns 25 séculos, quando um oficial do faraó Tutmés II vangloriou-se de ter cortado o rabo do cavalo do rei de um exército inimigo. Daí, por vias linguísticas, em Portugal, até a ressurreição prática, no cangaço por Lampião e outros, tornou-se sinônimo de briga de grandes proporções também no Brasil.
O filósofo grego Zenão de Eleia, aquele que contestou a realidade do movimento usando uma tartaruga, arrancou outra coisa. Apesar de passar a vida questionando ideias, ou talvez por causa disso, envolveu-se na luta política concreta. No século V a.C., participou de uma conspiração para derrubar o tirano Nearco. Segundo o historiador Diógenes Laércio, foi preso e torturado para entregar seus cúmplices. Zenão pareceu ceder. Pediu para Nearco aproximar-se pois queria dar com a língua nos dentes. Na verdade, deu com os dentes numa das orelhas do tirano, soltando-a apenas depois de ser esfaqueado até a morte. Serviu de inspiração para que os eleianos derrubassem, enfim, Nearco.

Na versão de Demétrio de Faleros, Zenão arrancava outra parte de Nearco com os dentes: o nariz, um órgão considerado nobre em várias culturas e épocas. No nheengatu, o tupi moderno, tĩ pode significar tanto “nariz, venta” como “vergonha” em expressões como “Você não tem nariz/vergonha?”.
Já no entrevero entre os pensadores Marcel Camus e Jean-Paul Sartre, não se arrancaram orelhas mas se jogaram verdades na cara. Amigos durante a Segunda Guerra Mundial, estranharam-se depois, inclusive por vaidade. Camus, fortemente influenciado pelas experiências de seu pai, era contra a pena de morte e a violência política indiscriminada; Sartre era a favor de se pegar em armas e usá-las em qualquer caso contra o inimigo. Quando uma revista sob a direção de Sartre publicou crítica negativa ao ensaio O Homem Revoltado (1951), Camus acusou o ex-amigo de dogmático — Sartre defenderia o comunismo stalinista mesmo com a denúncia dos crimes do ditador —, e ouviu do ex-amigo que era um burguês vigarista. Mais tarde, Sartre endossou a revolução armada dos argelinos enquanto Camus recusava-se a ver as coisas como preto-e-branco. O escritor argelino precisou morrer num acidente de carro, em 1960, para que a rivalidade terminasse num comovente tributo de Sartre: “O escândalo particular da sua morte é a abolição da ordem humana pelo desumano.”
Algumas pazes se fazem em vida. John Le Carré escreveu em defesa do respeito às religiões ao mesmo tempo em que condenava a perseguição ao colega Salman Rushdie por escrever Os Versos Satânicos (1988), obra acusada de blasfêmia por fundamentalistas islâmicos. Rushdie não o perdoou e os dois se alfinetaram por anos. Fizeram as pazes em 2011, durante um encontro literário, para desgosto do polemista Christopher Hitchens, ateu também fundamentalista, que atiçava a inimizade entre os dois sempre que podia.
Separadas na política: a cadeira no papel silencioso de Barack Obama, sendo entrevistada por Clint Eastwood no palco da Convenção Presidencial do Partido Republicano dos EUA, em 2012; e o assento da candidata Marina Helena, que serviu de comentário de José Luiz Datena às provocações de Pablo Marçal no debate entre candidatos a prefeito de São Paulo da TV Cultura, em 2024.


Guerra de nervos foi travada entre o presidente argentino Juan Domingo Perón e o pianista polonês naturalizado americano Arthur Rubinstein. Desde sua primeira visita, em 1917, Rubinstein apaixonara-se por Buenos Aires e se apresentaria inúmeras vezes no célebre Teatro Colón. Mas na década de 40, Perón havia assinado um decreto que exigia a transmissão pela rádio de todos os espetáculos realizados no Colón, e Mister Rubinstein odiava essas transmissões ao vivo. Assim que transferiu o concerto, a ser executado em seu próprio piano importado dos EUA, para um cineteatro da Avenida Corrientes. Eis que Rubinstein soube que a burocracia da aduana levaria inéditas três semanas para liberar seu instrumento. No porto, insinuaram-lhe que tudo seria mais fácil se ele mudasse de ideia e se apresentasse no Colón… Nada como ter amigos nos lugares certos, Rubinstein conversou com Theodore Steinway, aquele da fábrica Steinway & Sons, que lhe mandou avião de carga com novo piano. Rubinstein se apresentou na Corrientes e, em seguida, doou o instrumento ao acervo do Colón.
Quem escreve, seus males proscreve! Num grande estudo, 50 estudantes da Universidade de Nagoya, Japão, foram orientados a escrever sobre problemas sociais. Os textos seriam analisados por terceiros. Receberam comentários cruéis sobre a qualidade do seu trabalho. Em seguida, deveriam colocar no papel sua reação às críticas. Metade foi instruída a jogar o papel no lixo; a outra deixou suas anotações na mesa dos pesquisadores. Aqueles que tiveram a oportunidade de amassar e jogar fora o texto com suas reações disseram ter sentido menos raiva após o gesto. Experimentos posteriores, com o papel sendo queimado ou triturado, produziram resultados similares.
Conflito do bem. Na capital do Cazaquistão, Altana, disputam-se os bianuais Jogos Nômades da Ásia Central, uma celebração não só dos esportes mas também das outras tradições dos povos das estepes. Entre as modalidades, está a fuga de moças a cavalo. O objetivo dos seus perseguidores, rapazes também a cavalo, é alcançá-las para poder beijá-las. Porém, o esporte mais popular é o buzkashi, uma espécie de rúgbi equestre onde se disputa uma cabra morta sem cabeça.
É difícil fazer alguém entender algo quando o salário dessa pessoa depende de que ela não entenda nada.
Upton Sinclair, descrevendo sua experiência com a mídia quando era candidato a governador no livro de memórias I, Candidate for Governor: and how I got licked (1935).
Que casa, de fato, é tão estável, que Estado é tão firme que não possa ser destruído por brigas e desavenças? Daí se vê o quão vantajosa é a amizade.
O orador e político romano Marco Túlio Cícero, em Sobre a Amizade (44 a.C.).
Só não matei Marlene Mattos por causa do Código Penal.
A produtora Rita Maldonado, descrevendo sua relação com a empresária de Xuxa Meneghel, Marlene Mattos, no documentário Pra Sempre Paquitas.
Fui mordido; preciso evitar infecção que me leve
Ou morto estarei como aquilo que Naipaul escreve
Leia seus últimos livros para entender o que estou a falar:
Uma letargia de fazer vomitar
Derek Walcott, em seu poema The Mongoose, lido no Festival Internacional Literário de Calabash de 2008, em espetacular salvo de sua longeva briga com o escritor V.S. Naipaul. Tradução precária do autor desta edição.