Os almanaques eram publicações anuais que traziam de tudo, das fases da lua até remédio para unha encravada. Isto aqui é uma versão em pílulas semanais. Nesta edição: colhe-se o que se planta de norte a sul com o agrão e o agrinho, o pampa e o pantanal, o insustentável e o possível, a vaca e a soja, Ronaldo Caiado, Gusttavo Lima, Monteiro Lobato, fogo, terra, água, ar, e fruta-pão.
Um chuveiro! Ao transpirar, uma árvore grande da Floresta Amazônica bombeia para a atmosfera mil litros de água por dia. Esses rios aéreos vão carregar umidade para Argentina, Uruguai, Paraguai, e as lavouras ricas do Sul, do Sudeste, e do Centro-Oeste do Brasil. Menos floresta, menos chuva. Menos chuva, menos safras.
Pode ser a gota d’água. Os norte-americanos estão comendo cada vez mais frango e pizza. Isso levou ao aumento de produção de alfafa e soja para a alimentação de vacas e galinhas. Estas culturas necessitam de bastante água, especialmente por irrigação, o que está levando à diminuição dos lençóis freáticos em várias regiões dos EUA.
Dessalinização pode ser uma solução de pouca energia para o consumo doméstico em caso de crise de abastecimento de água. No caso do setor agrícola, só aumentaria o desastre.
A dependência de monoculturas primárias sem nenhum encadeamento produtivo deixa a economia brasileira vulnerável porque o preço dessas commodities é volátil. Foi o que aconteceu entre 2014 e 2016, por exemplo. No Brasil, agricultura, silvicultura, e modificações do uso do solo representaram três quartos das emissões de gases-estufa entre 2000 e 2020, enquanto no resto do mundo a média foi de 18%.
A concentração de renda entre 2017 e 2022 foi impulsionada por estados com predominância do agronegócio latifundiário.
Segundo relatório do FGV Agro, o setor agropecuário cortou 558 mil postos de trabalho entre o segundo trimestre de 2016 e o de 2023. O avanço tecnológico diminuiu a necessidade de mão-de-obra no campo em favor de poucos empregos formais e melhor remunerados. No cômputo geral, é um dos setores que menos gera empregos no país.
Relatório do Banco Mundial estima que adoção pelo agronegócio do Plano de Agricultura de Baixo Carbono (ABC) do governo Lula — com recuperação de pastagens degradadas e maior integração lavoura-pecuária-floresta — poderia diminuir em até metade o volume de emissões de CO2 até 2030.
Com a soma de todas as desonerações e os créditos presumidos, a cadeia produtiva da soja custa 56,8 bilhões de reais ao país entre isenções e benefícios fiscais, quase o dobro das renúncias estimadas pelo governo federal para toda a cesta básica. Essa conta não inclui os repasses federais aos estados para exportações. Além disso, a soja — 27% do PIB do agronegócio nacional junto com o biodiesel — é produto de baixíssimo potencial de agregação de valor.
Entre 2010 e 2017, a cadeia da carne bovina ganhou R$123 bilhões em subsídios.
Em dados do IBGE de 2017, a agricultura familiar corresponde a 77% dos estabelecimentos do setor no Brasil e produz 18% do rendimento agrícola em 23% da área total da agropecuária. É a responsável por grande parte da produção de hortaliças, como abobrinha, cenoura e espinafre.
O Brasil responde por apenas 0,2% do comércio mundial de produtos frescos, pouco processados, de alta sofisticação, e compatíveis com a floresta, segundo Salo Coslovsky, pesquisador de indústrias da Universidade de Nova York e da Inciativa Amazônia 2030. É um mercado que movimentava 200 bilhões de dólares em 2021. Bolívia, Uganda, Vietnã e Costa do Marfim já estão bem mais avançados neste setor que os brasileiros.
Seu pão não é mais o mesmo. Análises de amostras de trigo em 17 países mostraram um declínio de minerais e proteínas em favor de mais carboidratos.
Você não está vendo coisas: aquela vaca quer matá-lo. Nos EUA, mais pessoas morrem por ataques de bovinos do que de tubarões. Elas podem estar protegendo a sua cria, um touro talvez guarde seu território, ou atacam sem motivo aparente que não seja o fato de não terem ido com a sua cara. E as diferenças de agressividade entre boi e vaca não são tão grandes como se pensava. Se você estiver passeando com um cachorro, elas talvez registrem o animal como ameaça e a situação pode azedar rápido.
Na Inglaterra, ataques de gado bovino são a maior causa de mortes entre trabalhadores da agropecuária. Um site com o sugestivo nome de Vacas Assassinas registrou 889 incidentes entre 2017 e 2024 na Inglaterra e no País de Gales.
Na Índia, a situação é agravada pelo fundamentalismo hindu dominante, que proíbe o abate de bovinos, considerados sagrados. Na região de Uttar Pradesh, que exporta carne de búfalo, o governo perseguiu e fechou abatedouros clandestinos de muçulmanos, que largaram seus rebanhos no mato prontos para atropelar os incautos.

A consolidação do mercado de laticínios nos EUA dizimou as pequenas fazendas de gado leiteiro no último meio século. Se diminuiu o número de fazendas, aumentaram os rebanhos: de 648 mil fazendas em 1970 a 24 mil em 2022, em sua maioria com mais de 2 mil cabeças cada. O custo de criação para os pequenos produtores ficou impraticável.
A tendência parece ser universal. Na Alemanha, eram 139 mil produtores em 2000, e 55 mil vinte anos depois. No Brasil, segundo dados da Embrapa, um terço (500 mil propriedades) dos produtores saíram do ramo entre 2000 e 2021. No entanto, as fazendas que produzem até 200 litros de leite diários ainda são 93% dos estabelecimentos leiteiros do país, e produzem 49% de todo o leite brasileiro.
Luiz Carlos Molion, o climatologista aposentado da Universidade Federal de Alagoas que nega a existência de aquecimento global por influência humana, já foi diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais) antes de mudar sua visão na década de 1990. Na década de 70, influenciou o cientista Carlos Nobre, importante pesquisador da mudança climática, a seguir carreira na meteorologia. Apesar de dar palestras pelo Brasil afora afirmando sua negação, Molion não tem experiência com modelagem climática. Nenhum dos seis artigos com seu nome publicados em revistas científicas de alto impacto contesta o aquecimento global.
Em 2016, Carlos Nobre foi convidado por Blairo Maggi, latifundiário e Ministro da Agricultura, a dar uma palestra para o conselho do Grupo Amaggi, a gigante brasileira da soja, em Cuiabá (MT). O climatologista contou que temperaturas acima dos 40˚C seriam cada vez mais comuns na região, especialmente na época do plantio da soja, prejudicando produtividade e aumentando eventos de seca. Ouviu dos conselheiros-produtores duas ilusões: a produção de soja aumentaria com o calor e a mudança climática não era real. Molion havia passado por ali antes.
Separados no berço, unidos na política: o donatário da capitania hereditária dos Goiás, governador Ronaldo Caiado, e o empresário-celebridade Roberto Justus.
A guinada do agronegócio cada vez mais para a direita e o apoio maior a políticas protecionistas em certos estados coincide com o aumento de sua exportação de grãos para a China. Resultados semelhantes foram detectados em outros países sob a mesma influência.
Em seu conto de 1914, Velhas Pragas, Monteiro Lobato culpa o caboclo “seminômade, inadaptável à civilização” pelas queimadas que devastaram a Serra da Mantiqueira. Não foram caboclos seminômades que orquestraram o Dia do Fogo, em 10 de agosto de 2019. Produtores rurais do Pará coordenaram uma série de incêndios, que atingiram especialmente reservas florestais amazônicas. Um estudo do mesmo ano acusou influência do presidente Jair Bolsonaro ao constatar aumento significativo de buscas no Google por palavras-chaves de seus discursos nos dias anteriores à ação criminosa. Nos anos seguintes, o presidente repetiria, contra evidências, que floresta úmida não queima. Em 2021, 107 anos após Lobato, diria na ONU que os responsáveis pelos incêndios eram “índios e caboclos”.
Precisamos falar sobre São Félix do Xingu (PA). São Félix do Xingu foi epicentro do Dia do Fogo de 2019. São Félix do Xingu é o município com maior número de queimadas em 2024. Em 2023, São Félix do Xingu seguia com o maior rebanho bovino do país (1,1% do total). Em São Félix do Xingu, fica uma das unidades de conservação mais invadidas e desmatadas do país, a Terra Indígena Apyterewa.
“Se queremos ter chuva para abastecer os reservatórios que provêm energia e água potável para consumidores, indústria e o agronegócio, precisamos preservar a floresta amazônica. E as imagens de satélite não deixam dúvidas: quem melhor faz isso são os indígenas”, disse Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas, uma inciativa que analisa o uso da terra no Brasil. Entre 1985 e 2023, as reservas indígenas perderam apenas 1% de sua vegetação nativa.
Amaldiçoado. O produtor rural gaúcho vem do prejuízo de duas secas (2022 e 2023) e uma mega-enchente (2024), eventos exacerbados com a mudança climática por ação humana. O setor agropecuário constitui cerca de 15% do PIB do Rio Grande do Sul, o dobro da média nacional (números de 2021). Vegetação nativa ajuda a controlar enchentes e enxurradas. Entre 1985 e 2022, o estado perdeu 22% de sua vegetação nativa, especialmente para o plantio de soja e às margens do rio Guaíba. O número de queimadas dobrou entre 2018 e 2019. Areais se formam no que já foi parte do pampa, o bioma nativo mais devastado do Brasil. Produtores que perderam tudo apostam na plantação de… soja.
A área da soja triplicou no Cerrado e cresceu 20 vezes na Amazônia entre 2000 e 2019. No mesmo período, o uso de agrotóxicos nestas regiões aumentou de 3 a 10 vezes. Entre 2008 e 2019, foram 123 mortes adicionais de crianças com menos de 10 anos por leucemia infantil. Pesquisadores concluíram que os pesticidas contaminaram lençóis d’água.
Levantamento da Fiocruz de 2023 observou que o risco de morte fetal na região da soja de Mato Grosso é 18% maior do que naquelas onde a soja cobre menos de 5% da área total. Em Goiás, há mais mortes por agrotóxicos na região dos latifúndios de soja, milho, e cana-de-açúcar.
Análise do leite materno de 100 mulheres de Tupã (SP) mostrou contaminação por glifosato, o agrotóxico mais popular do Brasil e um conhecido carcinógeno. A substância também está ligada ao desenvolvimento do mal de Alzheimer.
A remoção de florestas para cultivo de monoculturas diminui a intensidade das chuvas e aumenta a temperatura, prejudicando a agricultura. Mais calor afeta o trabalho diário na lavoura. No Cerrado, responsável por 20% da produção mundial de soja e com taxa de desmatamento de 17% só em 2023, verifica-se um atraso de quase dois meses da estação pluvial e aumento de 2˚C na temperatura desde 1980.
O Cerrado responde por 70% da água que entra na bacia do rio São Francisco e por 47% da do rio Paraná. Também abastece o Madeira e o Tocantins, entre outros. Nos últimos anos, a área cultivada na região aumentou 120% e o volume de chuvas diminuiu de 1400mm para 1000mm ao ano. A evapotranspiração quase dobrou. O rio Madeira está com um nível de 41 centímetros na altura de Porto Velho (RO), recorde negativo. Seca também afeta o São Francisco e o Paraná, que já sofrera com estiagem histórica em 2021.
O cantor, empresário, amigo do ministro do STF Kássio Nunes Marques, futuro ex-candidato ao Senado, e grande proprietário rural Gusttavo Lima é o rei do sertanejo, do estilo arquitetônico greco-goiano, da harmonização facial, e dos contratos para shows com prefeituras, onde também faz divulgação de bets. Somente em 2024, ele já faturou 14,5 milhões de reais de dinheiro público com cachês acima do limite da Lei Rouanet.
A Lei do Pantanal, aprovada em dezembro de 2023, é o retrato de uma integração possível entre o agronegócio, o poder público, cientistas e ambientalistas. Sob o comando do governador do Mato Grosso do Sul, Eduardo Riedel, um grupo de trabalho formado por todos esses grupos discutiu e redigiu a lei, que dispõe sobre proteção e exploração sustentável do bioma.
A população mundial está aumentando, mas uma mudança de dieta que privilegiasse plantas reduziria drasticamente a necessidade de área cultivável. E já que estamos falando nisso, que tal adicionar uns insetos ao prato?

As pessoas estão trabalhando numa lógica de “vamos degradar a floresta e vamos colocar gado do mesmo jeito. E, para degradar a floresta, vamos queimar”. […] É muito essa lógica: eu vou acabar com a floresta. Não preciso desmatar. Porque o desmatamento é caro. O fogo é muito mais barato, só comprar gasolina e sair espalhando.
Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama, explicando para quem os incêndios florestais são um ótimo negócio (de curto prazo).
Qual o problema do Brasil, que é a crítica correta ao país em relação às mudanças climáticas? É o desmatamento.
Ricardo Mussa, CEO da produtora de etanol Raízen, em entrevista.
A lição é esta e trata-se de uma lição sobre o sistema: não se muda nada sem mudar tudo.
O filósofo Fredric Jameson (1934-2024), em Valences of the Dialectic (2010).
Sim: não é esta a maneira de viver nos tempos modernos, consumir e esquecer o resto? A civilização pode desmoronar a qualquer momento.
Jaroslav Kalfař, em seu romance O Astronauta (2017 ), com tradução de Rogério Galindo.