Os almanaques eram publicações anuais que traziam de tudo, das fases da lua até remédio para unha encravada. Isso aqui é uma versão em pílulas semanais: fatos e curiosidades que encontrei na internet e fora dela.
No dia 12 de junho de 2024, Dia dos Namorados, a Câmara dos Deputados aprovou regime de urgência — a proposta pode seguir para votação em plenário sem passar por análise preliminar das comissões — para o Projeto de Lei 1904/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante e assinada por mais 31 outros. O PL altera os artigos do Código Penal sobre o aborto para equiparar ao homicida aquela que interrompe a própria gravidez, mesmo que seja legal (casos de risco à vida da mãe, feto anencéfalo, ou estupro), após a 22ª semana de gestação. Médicos que executarem a operação após este período também passam a ser penalizados. Assim, a vítima do crime de estupro (art. 213, CP) seria castigada três vezes: sofre a violência sexual, é presa por tentar tirar de si o produto dessa violência, e recebe pena maior que a do violentador.
A votação durou 23 segundos sem que o presidente da Câmara, Arthur Lira, informasse o número ou o objeto da deliberação.
Com o beneplácito das lideranças do governo, o acordo para que a urgência fosse apreciada numa votação simbólica, sem abertura do painel eletrônico dos votos, foi costurado antes no gabinete de Lira. Depois, o líder da bancada evangélica, Eli Borges, foi ao Plenário da Câmara justificar o projeto nos seguintes termos: “Trata-se de um assassinato porque esse feto está em plena condição de sobreviver, inclusive fora do útero da mãe. Basta que o governo melhore o atendimento psicológico para essa mãe que não quer continuar com essa gestação.”
Foi também nesses termos que a deputada Carla Zambelli, outra signatária do PL 1904, referiu-se às vítimas de estupro que ousarem se submeter ao aborto legal após 22 semanas: ‘A esquerda… parece lutar para que, como eles dizem, "meninas" virem @ss@ss1n@s.’
O texto do PL 1904 começa defendendo o limite de 22 semanas para a punibilidade mesmo em casos de aborto legal. Cita a Constituição — dos EUA — e termina criticando o voto da Ministra Rosa Weber na ação para descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação, que corre no STF e não tem nada a ver com o endurecimento do artigo 128 do Código Penal. Apesar de tantas citações, não apresenta embasamento científico, legal, social ou filosófico claro. E trata sempre o feto como mais importante que a mãe.
Em 2021, o Conselho Federal de Medicina (CFM) já havia tentado, por meio de resolução sem explicação científica, proibir o aborto legal acima de 22 semanas. O STF suspendeu a norma.
Na justificativa do PL 1904 — e de médicos que se recusam a fazer o procedimento — está uma Norma Técnica do Ministério da Saúde que define abortamento como “a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª semana”. A norma não explica como chegou a essa definição nem tem força de lei, isto é, não obriga ninguém a nada. E o artigo 128, II, do Código Penal não estabelece limite algum.
A Organização Mundial de Saúde não coloca limites temporais para a interrupção da gravidez e chega a recomendar o tipo de procedimento adequado “além de 24 semanas” para “aborto induzido”.
Pelo PL 1904, uma vaga “viabilidade fetal, presumida” já basta para configurar crime após 22 semanas. Ainda que haja exceções, o endurecimento das penas pode deixar médicos mais temerosos. Na católica Polônia, as leis permitem o aborto nos mesmos casos do Brasil. Em 2021, uma mulher de 30 anos morreu de septicêmia na 22ª semana de uma gravidez de alto risco. Médicos tinham se recusado a atendê-la até o fim porque detectaram batidas de coração do feto, isto é, uma viabilidade fetal presumida.
Desde 1998, as leis de El Salvador não permitem aborto em hipótese alguma, nem mesmo na de abuso sexual. Mulheres podem ficar presas por 30 anos caso o façam. Mães que sofrem aborto espontâneo podem ser condenadas pelo sistema judicial sem provas razoáveis de crime. Na sua reforma constitucional, o atual presidente, Nayib Bukele, manteve as penas duras. Sua política anticrime diminuiu a violência das gangues nas ruas, mas não contra as mulheres. Menores continuam sendo estupradas, agora também por membros do exército, e têm de aguentar uma gravidez que nem entendem direito.
Além de El Salvador, Honduras, Nicarágua e República Dominicana seguem proibição absoluta. O Uruguai e as Guianas permitem a interrupção da gravidez em qualquer caso até um limite. Na Argentina, é de 14 semanas; na Colômbia, até 24.
Apesar das proibições no Brasil, realizam-se centenas de milhares de abortos clandestinos todos os anos no país, engrossando as estatísticas de morte materna graças às condições precárias dos procedimentos.
Garotas podem ficar grávidas na puberdade, mas isso não significa que tenham condições físicas de parir uma criança. Durante seu desenvolvimento, que pode levar quatro anos, seu útero, a pélvis e os ossos vão crescendo lentamente. A pélvis ainda está muito estreita, o que torna imperativo um parto por cesárea — e um útero marcado quando ainda está em desenvolvimento. Incidentalmente, o Brasil tem o segundo maior índice de cesáreas do mundo — mais da metade dos partos — apesar de a prática estar associada ao aumento de riscos de mortalidade para a mãe.
Gravidez antes dos 19 anos está associada a maiores riscos de pré-eclâmpsia, partos prematuros, bebês com baixo peso, morte do nascituro, depressão pós-parto, e pensamentos suicidas.
Estudo com milhões de mulheres canadenses relaciona a gravidez adolescente a morte precoce.
Um dos motivos alegados por médicos brasileiros para a recusa em fazer aborto legal nas vítimas de estupro, mesmo crianças, é o item VII dos Princípios Fundamentais no Código de Ética Médica:
“O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje…”
Porém, há ressalvas na segunda parte do item que restringem esse direito do médico:
“…excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.”
Por vergonha e medo, somente 10% das vítimas procura ajuda após sofrer um estupro. Meninas costumam se retrair e nem sabem o que acontece com seu corpo se engravidam.
Em 2022, foram registrados 74.920 casos de estupro no Brasil, um recorde histórico. Dois terços das vítimas eram vulneráveis (menores de 14 anos). A probabilidade de subnotificação é alta.
Em 1998, a Rede Globo exibiu na série interativa Você Decide o episódio “Vida”, onde uma jovem religiosa (Miriam Freeland) deve escolher se vai terminar uma gravidez, consequência de um estupro. “Eu vou abortar”, ela diz no final preferido por 68% dos votos dos telespectadores.
O PL 1904 é patrocinado pela bancada evangélica. A maior razão para a fixação do limite de 22 semanas de gestação é princípio religioso, mas a Bíblia não menciona o aborto. Alguns intérpretes se valem de passagens do Velho Testamento para tentar fixar o momento em que começaria a vida humana, mas o assunto está longe de ser consenso.
No Livro de Jeremias 1:5-7, Deus fala ao profeta: “Antes que eu te formasse no ventre, eu te conheci; e, antes que saísses da mãe, te santifiquei...” No entanto, o que vem a seguir deixa claro que Jeremias merece esse tratamento por ser um escolhido divino: “…e às nações te dei por profeta.”
E no cântico 139 dos Salmos: “Os teus olhos viram o meu corpo ainda informe, e no teu livro todas estas coisas foram escritas, as quais iam sendo dia a dia formadas, quando nem ainda uma delas havia.” A interpretação das palavras de Davi vem do pensamento aristotélico, e a Igreja Católica fixou o momento da concepção como o começo da vida humana.
E só. Nada na Bíblia se refere ao aborto de feto gerado por violência ou que põe em risco a vida da mãe. Por outro lado, o livro sagrado cristão condena explicitamente o estupro no Deuteronômio 22:25-27, e de forma mais oblíqua com a concubina do levita que é brutalmente morta em Juízes 19 “naqueles dias em que não havia rei em Israel”. Nos tempos do Velho Testamento, e no pensamento conservador brasileiro ainda hoje, o estupro atenta contra a honra da família em primeiro lugar. Recomendava-se, no Livro Sagrado, o casamento forçado como solução (Deuteronômio 22:13-19).
A verdade é que os evangélicos não se importavam muito com o assunto até fins da década de 1970, quando foi lançado o documentário antiaborto O Que Aconteceu com a Raça Humana, dirigido por Frank Schaeffer e produzido por seu pai, o líder evangélico norte-americano radicado na Suíça Francis Schaeffer. As feministas não gostaram e foram para a frente dos cinemas nos EUA protestar. Os evangélicos não gostavam das feministas e foram para a frente delas protestar. Nascia uma cruzada. Hoje, Frank renega a direita religiosa e defende o direito de escolha das mulheres.
Em 1997, a revista Veja entrevistou dezenas de mulheres, famosas e anônimas, para produzir sua matéria de capa, “Eu fiz aborto”. Havia também o depoimento de um juiz corregedor, católico praticante:
“Cheguei à conclusão de que minhas convicções pessoais e religiosas devem ficar em segundo plano quando estou no papel de juiz. Quando estamos decidindo, a lei é a nossa religião. Isso é o bastante para nossa consciência. O fato é que não podemos comprometer a saúde mental de mães que estão passando por uma situação terrível.”
Em 2009, o arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, excomungou famílias e equipe médica envolvidos no aborto legal de uma garota mirrada de 9 anos, 1,32m de altura e 36kg, grávida de alto risco de um padrasto que a violentava desde que ela tinha 6 anos.
Olímpio Moraes, obstetra e professor da Universidade de Pernambuco excomungado pelo arcebispo em 2009:
“Há crianças que nem sabem o que é a gravidez, nem sabem que estão grávidas; ou que escondem a gravidez ameaçadas porque o algoz é da própria família. Quando a família descobre, a gravidez já está com cinco meses. Procurar ajuda no Brasil para esse abortamento é difícil, porque são poucos lugares que oferecem o serviço.”
Por ano, médicos realizam cerca de 2000 abortos legais no Brasil. Não há dados sistematizados no país mas pesquisadores estimam que a gravidez passa da 22ª semana num terço desses procedimentos. Apenas 3,6% dos municípios oferecem serviços de aborto legal nas redes de saúde. Quando muitas mães, especialmente as mais jovens, percebem a gravidez, encontram um hospital para realizar o procedimento, e marcam enfim o dia, a 22ª semana já chegou.
O número de brasileiros que defende a prisão de mulheres por aborto tem diminuído segundo o Datafolha: 64% em 2016, 58% em 2018, e 52% em 2024.
Outra pesquisa, de 2022, mostrou que 87% dos brasileiros são favoráveis à interrupção da gravidez em caso de estupro; 52% concordam que os casos de aborto legal devem ser mantidos; e outros 22% gostariam que fossem ampliados.
Ainda outro levantamento revela tendência crescente entre evangélicos e católicos contra a prisão de mulheres que abortam por estupro.
Resultado de enquete no site da Câmara dos Deputados sobre o PL 1904 até o dia 15 de junho: 88% são contra.
Separadas no berço: Bia Kicis, deputada signatária do PL 1904, e Tia Lydia (Ann Dowd), a instrutora de jovens férteis na série distópica O Conto da Aia (2017- ).
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Você suportaria ficar mais um pouquinho?
Joana Ribeiro Zimmer, juíza de Santa Catarina, tentando convencer garota de 11 anos a manter gravidez provocada por estupro.
Podemos nos sentir culpadas mas saberemos que não somos culpadas.
Mariche, uma das menonitas estupradas por membros da própria comunidade no romance Women Talking, de Miriam Toews.