Edição especial da Redentora II
Sessenta anos daquela que o presidente não nos ousa dizer o nome
Em 1964, isto é, há 60 anos, as Forças Armadas apearam o presidente eleito João Goulart do poder com o apoio de empresários, intelectuais, e do governo norte-americano. A operação foi chamada pelos conspiradores de “Revolução Redentora”, embora poucos tenham se redimido até hoje. Este almanaque especial apresenta sessenta instantâneos do período 1964-85 em duas partes. A primeira está aqui. Esta é a segunda.
Após quatro anos, a ficha caiu. Muitos apoiadores do golpe de março de 64 estavam presentes na Passeata dos Cem Mil de junho de 68, na Cinelândia do Rio, contra a repressão do regime. Jaime Câmara, o ultraconservador cardeal do Rio que abençoara a Marcha da Vitória de 2 de abril de 64, benzeu também a dos Cem Mil. O líder estudantil Alfredo Sirkis trocara a foto de Kennedy pela de Guevara na parede do quarto, e logo trocaria o quarto pela clandestinidade na luta armada. Drummond deixou o “alívio” por uma ode às imagens reveladoras do fotojornalista Evandro Teixeira. E os editoriais do Correio da Manhã e do Jornal do Brasil substituíram os elogios por críticas amordaçadas.
Para driblar a censura, Alberto Dines, o editor-chefe do Jornal do Brasil, apelou para a meteorologia no canto superior esquerdo da primeira página ao comentar a decretação do AI-5 em 68: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos.” Toda aquela edição estava estranha: textos com lugares-comuns abolidos da redação desde 1956, uma foto de jogo do Brasil da Copa de 62 na capa, e um lutador de judô subjugando o adversário diminuto no lugar dos editoriais.

Se o leitor visse versos de Camões ou receitas de doces numa página de jornal, isto era sinal de notícia retalhada ou totalmente censurada. O Estadão conseguiu a proeza de publicar todo o poema Os Lusíadas duas vezes tamanha a quantidade de notícias cortadas entre 69 e 75.
Antes de 68, censura já havia. E por qualquer motivo. A edição 10 da revista Realidade foi apreendida, em janeiro de 67, por veicular uma matéria sobre parto com uma foto de, veja bem, um parto.
Então, era certo que o capitalismo da TV de massa e a rigidez do regime colidiriam depois de 68. Foi o que aconteceu em 29 de agosto de 71, quando os populares Flávio Cavalcanti (TV Tupi) e Chacrinha (Globo) resolveram batalhar pela audiência recebendo em seus programas de auditório — sim, no mesmo domingo — a famosa mãe-de-santo Cacilda de Assis para incorporar Seu Sete da Lira, um exu da umbanda, ao vivo para nossos telespectadores. A censura chamou o espetáculo de “baixo espiritismo” e “propaganda do charlatanismo” e as duas emissoras criaram um Código de Ética para evitar maiores represálias. Não deve ter ajudado a situação o rumor de que Scylla Médici, a primeira-dama do país, tinha entrado em transe assistindo a tudo de casa.

O arcebispo de Olinda e Recife, D. Helder Câmara, crítico ferrenho do regime, sofria todo tipo de retaliação. Em 1970, picharam o agressivo slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o” no muro de sua residência, nos fundos de uma igreja, para intimidá-lo. O regime também sabotou sua indicação ao Nobel da Paz naquele ano, divulgando uma foto em que pregava a integralistas na década de 30 e acusando-o de fascista (ou comunista, conforme a vontade do freguês), num esforço que envolveu do SNI a David Nasser na revista O Cruzeiro ao arcebispo de Diamantina.
O regime militar praticamente extinguiu os movimentos armados urbanos em 1974. Como precisava de inimigos para não entrar em crise existencial, continuou torturando e matando. Assim como Vladimir Putin tem predileção por oponentes caindo de janelas de edifícios, o aparato militar gostava de suicidar presos, muitos inocentes de qualquer conspiração, em suas celas. A prática continua viva.
Era política de estado desde sempre. Ao assumir a presidência, o general Ernesto Geisel autorizou a continuação do uso de “métodos extralegais” contra “perigosos subversivos” que vinha do governo Médici. (E de forma não-sistemática desde, pelo menos, abril de 64.) De 1974 em diante, João Batista Figueiredo, chefe do SNI e último presidente ditatorial, daria as autorizações para as execuções dos subversivos nessas operações, conforme memorando do diretor da CIA a Henry Kissinger, secretário de estado dos EUA.
O brigadeiro Francisco Teixeira, veterano piloto da Segunda Guerra Mundial, foi um dos 6591 militares perseguidos e defenestrados ao longo do regime. Ferrenho defensor da legalidade desde 64, costumava ser preso sem maiores explicações toda vez que se trocava de general na presidência da República.
O Major Curió é um pequeno personagem importante na história brasileira de três décadas. Agente do Centro de Inteligência do Exército, esteve à frente da ofensiva contra a Guerrilha do Araguaia (1972-1975), que marcou o fim de fato dos movimentos armados. Ao contrário da narrativa oficial, a maioria dos presos não foi morta em combate mas executada depois de ser capturada desarmada, segundo arquivos do próprio Curió abertos em 2009.
Na década de 80, foi o xerife autonomeado de Serra Pelada, então o maior garimpo e exemplo de falência estatal a céu aberto do mundo.
Na década de 90, agora deputado federal, gravaria uma conversa com Paulo César Farias sobre promessas de doações para a sua campanha eleitoral. Essas gravações estariam na base da ação criminal por corrupção passiva contra o ex-presidente Fernando Collor de Mello em 94.
No relatório final da Comissão Nacional da Verdade (2012-14), constam os nomes de 224 mortos e 210 desaparecidos sob a responsabilidade do regime militar. Não é uma lista exaustiva; é o que se pôde encontrar.
Há um pequeno grupo de ausentes que caíram pelas rachaduras das definições legais: os quatro executados por companheiros da luta armada nos tribunais revolucionários. Haviam sido acusados, injustamente, de entregar os colegas de guerrilha quando foram presos e torturados pelo aparato policial-militar.
Somente uma vez o regime puniu militares por tortura. Foram os oficiais que espancaram e torturaram 15 soldados suspeitos de “tráfico e uso de tóxicos, em especial maconha” dentro de um batalhão militar da Barra Mansa (RJ) em 71. Mataram quatro, ocultaram os cadáveres e simularam uma fuga das vítimas para limpar seus rastros. Foram condenados pelo Superior Tribunal Militar em 74, mas o regime fez de tudo para abafar o caso.
Crianças de até um ano de idade foram presas, agredidas por policiais, torturadas, fichadas como terroristas e condenadas ao exílio, e viram o pai ser torturado e assassinado.
Num dia de 1974, os waimiri atroari da aldeia Kramna Mudî recebiam visitantes de outras tribos para uma festa às margens do rio Alalaú, em Roraima. De repente, uma aeronave se aproxima e a maioria corre para o pátio para ver do que se tratava. Receberam do alto uma chuva de pó. Quando novos visitantes chegaram, depararam-se com 33 mortos. Somente houve um sobrevivente.
Os dados censitários oficiais da Funai — na base da estimativa com pouco método e da contagem aérea — e o número de óbitos durante a construção da Transamazônica (1969-74) são imprecisos. Ainda assim, os esforços mais exatos de fins da década de 60 e de fins da ditadura dão conta de centenas de cadáveres, um quase-extermínio para povos de pequenas populações. Alijados do traçado da estrada e sem defesa natural contra doenças trazidas pelos novos conquistadores da Amazônia, foram morrendo em epidemias de gripe, sarampo, e tuberculose.
Jarbas Passarinho, o mesmo ministro que gritara “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência!” na reunião que oficializou o AI-5 em 68, foi também o grande campeão dos indígenas na Assembleia Constituinte de 87. Convencido pelo bispo do Xingu, D. Erwin Kräutler, o então senador do Pará defendeu o direito à terra dos povos originários num discurso crucial para os 400 votos a favor do artigo 231 da Constituição Federal de 88 — que novos parlamentares tentam corroer.
Previa-se uma extensão de 8 mil quilômetros para a Transamazônica, mas só pouco mais da metade foi entregue.
O samba de Martinho da Vila e Rodolfo de Souza para o desfile da Vila Isabel de 1973 originalmente criticava a megarrodovia. A censura mandou transformar samba e desfile em elogio.
A ordem e o progresso eram meter a floresta abaixo, como mostram os anúncios da época.




O milagre econômico foi a culminação de um processo de crescimento que começou na década de 40, com a aceleração industrial do país. A economia brasileira, nos primeiros anos da década de 70 até a crise do petróleo, cresceu em sintonia com o resto do mundo, que chegou a 6,4% em 73.
O PIB brasileiro, segundo cálculos da época – que não incluíam vários serviços, portanto pode ter sido menor – chegou a 14% em 73, um recorde. Daí foi só ladeira abaixo.
Para tentar domar a inflação no governo Médici, sempre a ponto de explodir no fim do milagre econômico, a equipe do Ministro da Fazenda, Delfim Netto, exercia controle pesado sobre os preços no Rio de Janeiro em detrimento de outras capitais. O efeito prático disso era uma maquiagem matemática. Por exemplo, o Índice Geral de Preços (IGP) de 73 ficou em 15,5% — puxado para baixo pelo peso do Rio — enquanto em cidades ignoradas por Delfim chegou a 26%.
Inflação em 1964: 92%. Inflação em 1973: 15,6%. Inflação em 1985: 231%.
Tanto Delfim Netto quanto Mario Henrique Simonsen encomendaram campanhas contra a inflação, pedindo sacrifício à população. A de Delfim chamou-se “Diga não à inflação” (1973) e a de Simonsen ficou conhecida como Campanha da Pechincha (1977). As duas foram um fiasco.
“É preciso fazer o bolo crescer para depois reparti-lo”, dissera o tzar econômico da ditadura, Delfim Netto. Como mostra a evolução do salário mínimo no período, o bolo nunca foi dividido. Os assalariados pagaram a conta da estabilização financeira pós-Goulart. A compressão dos salários e outras políticas públicas fizeram a concentração de renda saltar na primeira década e no quinquênio final do regime.
Desconstrução. Títulos de campanhas publicitárias da ditadura:
Em Tempo de Construir (1971)
Você Constrói o Brasil (1972)
País que se Transforma e se Constrói (1973)
Este É um País que Vai pra Frente (1976)
O Brasil É Feito por Nós (1977)
O Brasil que os Brasileiros Estão Construindo (1978)
Os casos de meningite meningocócica C vinham escalando em São Paulo desde o início da década. Em 74, explodiram também casos (e mortes) do tipo A. Poucos souberam e foram diagnosticados porque o governo proibiu qualquer notícia sobre o assunto, de estudos sobre a vacina a número de casos. Com eleições para o Congresso em novembro, os restos do milagre econômico, e vacinas insuficientes, o governo bloqueou informações o quanto pôde. (Não adiantou: com a economia caindo e a repressão subindo, o MDB acabou dando susto nas urnas.) Até hoje não se sabe exatamente o número de óbitos no país — perceba que a ditadura não era boa em contar seus mortos. Nas valas clandestinas do cemitério de Perus (SP), 450 das 1500 ossadas encontradas pertenciam a jovens menores de 16 anos, muitos provavelmente vítimas da doença.
Após um acordo com um laboratório francês e a construção da fábrica de fármacos da Fiocruz, iniciou-se a gigantesca campanha de vacinação contra meningite de 75. A partir daí, o Programa Nacional de Imunização finalmente decolou e se tornou referência internacional.
Com o seu II Programa Nacional de Desenvolvimento, Geisel promoveu uma pausa não só no ciclo rodoviário monumental dos militares mas também na política brasileira de décadas de ênfase nas estradas. Mudou o foco para o desenvolvimento da malha ferroviária, inclusive com o projeto da Ferrovia do Aço.
Criava-se uma empresa nova por semana em média. Foram tantas que os números levantados variam: de 274 a cerca de 440 estatais novas de legado aos civis.
“Estamos ansiosos por um governo honesto”, contou Carlos Lacerda no programa Ten O’Clock de 08 de junho de 1964 na BBC, numa turnê europeia para promover o regime. Quatro anos depois, o delegado Sérgio Fleury, um dos nomes mais conhecidos do aparelho de repressão e tortura militar, já dava cobertura a traficante de drogas de São Paulo. Seis anos após a entrevista de Lacerda, rolava comércio de contrabando em batalhão da polícia do Exército no RJ.
O general Golbery do Couto e Silva certa vez confidenciara ao secretário do presidente Geisel sua opinião sobre Fleury, blindado e perigoso: “Esse é bandido. Esse é um bandido. Agora, prestou serviços e conhece muita coisa.”
Um dos contrabandistas da polícia do Exército era Ailton “Capitão” Guimarães, apontado como torturador do Doi-Codi. O Capitão Guimarães deixaria o Exército em 1981, sem punições ou represálias, para se tornar um dos maiores bicheiros do Rio de Janeiro.
Em 1979, o diplomata de carreira José Jobim compareceu à posse do novo general-presidente, João Batista Figueiredo. Comentou com interlocutores sobre um esquema de corrupção na maior — em todos os sentidos — obra do regime, a hidroelétrica de Itaipu. Era um esquema que envolvia a alemã Siemens, maior fornecedora de material da construção. Tinha dossiê para provar. Uma semana depois, foi encontrado suicidado na Barra da Tijuca (RJ), com marcas de tortura no corpo. O dossiê sumiu.
Diretores da estatal de energia Eletrobrás ganhavam décimo-sétimo salário.
Documentos do SNI traziam evidência de corrupção até na Receita Federal.
Na máquina inchada e fortemente aparelhada, nem o governo sabia exatamente quanto ganhavam os executivos das empresas públicas. Angelo Calmon de Sá, presidente do Banco do Brasil (1974-1976) e futuro Ministro da Indústria e Comércio, recebia o mesmo salário anual que o todo-poderoso ex-secretário de estado norte-americano Robert McNamara (116 mil dólares).
Foi um duelo de titãs. De um lado, o censor Coriolano de Loyola Fagundes, autor de Censura e Liberdade de Expressão. Do outro, Solange Hernandes, a Dama da Tesoura, diretora linha-duríssima da Divisão de Censura de Diversões Públicas, posta ali por um pistolão dos serviços de informação. No meio, o suspense Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias, sobre um homem preso e torturado por milicianos de direita — o cineasta sabia que tinha que passar pela inquisição e omitiu o papel do Estado na trama — após ser confundindo com um subversivo. O filme tinha vários pareceres favoráveis. Solange engavetou todos, proibiu a obra e acabou. Coriolano levou o caso à justiça. Livre das amarras do AI-5 desde 78, a imprensa caiu em cima. Ao governo, não agradava a lavagem de roupa suja em público.
Oito meses depois, Pra Frente Brasil era liberado sem cortes. Vitória de Coriolano, com uma baixa: o presidente da estatal Embrafilme, o futuro chanceler Celso Amorim, que autorizara o financiamento público do filme.


O pastor luterano Mozart Noronha, ex-militante da Ação Popular e membro-fundador do Partido dos Trabalhadores, celebrou os ritos fúnebres de um ex-presidente da ditadura (Ernesto Geisel, em 1996), um opositor ferrenho da ditadura (Leonel Brizola, em 2004), e um comunista ferrenho (Oscar Niemeyer, que obviamente era ateu, mas a família não).
O general Olympio Mourão Filho doava ao Museu Mariano Procópio, de Juiz de Fora, a espada e a farda de campanha que usava como comandante das forças que fizeram a “redentora” de 1º de abril. Isso é que foi revolução: com pouco mais de dois anos já estava dando peças para museu.
Stanislaw Ponte Preta, alter ego de Sergio Porto, que costumava também chamar o golpe de 64 de “redentora”, mostrando que para revelar a real essência das coisas, basta dizer seus nomes no tom adequado.